Amor, uma pergunta minha
dilacerou-te.
Regressei a ti
da incerteza com espinhos.
Quero-te direita como
a espada ou o caminho.
Mas tu insistes
em manter uma curva
de sombra que não gosto.
Meu amor,
compreende-me,
quero tudo o que é teu,
dos olhos aos pés, às unhas,
por dentro,
toda a claridade, que escondias.
Sou eu, meu amor,
quem bate á tua porta.
não é um fantasma, não é
o que um dia parou
à tua janela.
Eu deito a porta abaixo:
eu entro na tua vida.
venho viver na tua alma:
tu não podes comigo.
Tens de abrir todas as portas,
tens que obedecer-me,
tens de abrir os olhos
para eu os observar,
tens de ver como ando
com passos pesados
por todos os caminhos
que, cegos, me esperavam.
Não tenhas medo,
sou teu,
mas
não sou viajante nem mendigo,
sou o teu senhor,
aquele que esperavas,
e agora entro
na tua vida
para não mais sair,
amor, amor, amor,
para ficar.
Pablo Neruda, Os Versos do Capitão, Campo das Letras, Porto, 1996
Antes não me tinha sido dada a sublime dádiva de conhecer este poema e a plenitude... e quando ficava exausto, ao perseguir a minha luta, ficava a pensar numa frase... um pensamento que assaltava o aviador do Vol de Nuit, já irremediavelmente condenado - porque sabia que o combustível não seria suficiente para chegar ao aeródromo e despenhar-se-ia nas montanhas - e mesmo assim prosseguia, vendo lá em baixo, ao sobrevoar a sua última cidade, os burgueses nos seus fatos domingueiros, esperando que o tempo circulasse sem os ver, escondendo-se da Vida atrás da rotina do banco de jardim e da leitura interminável do jornal, tão cheios de comodidades, tão "pobres", tão tristes, e a personagem pensava e eu com ela, que eles ao menos não sofriam a inquietação, tão esquivos de sonhar... será que eles, ao menos, tinham uma "sensata felicidade" embora rotineira, pouco ambiciosa, sem altos e baixos, pensava a personagem e eu com ela...
é que ainda não me fora dado saborear este poema... e a felicidade em toda a sua plenitude... agora sei que não é assim... e só posso partilhar a Luz, a minha Luz, eu que sou apenas ninguém e o infinito, que aprendo uma e outra e mil vezes de novo a andar, a caminhar, partilhar a Luz fulgurante que me ilumina, partilhá-la com os corações adormecidos entre o medo e a comóda luz mortiça da desistência de se atingir a plenitude de si própria, partilhar... partilhar sempre, entre o sofrimento e a luminosa e resplandescente Verdade.Partilho com todos vós um excerto, breve, da apresentação que fiz nas provas de doutoramento, não per si, mas a pensar em Almutâmide, que terá nascido por estes dias deste mês de Dezembro, há precisamente 970 anos na doce Cidade da Planície, a Baja muçulmana de pétalas de rosas vermelhas e ornada de árvores, na sua praça central, de tilia que só florescem mais para o fim da Primavera...
"E depois de tentar sistematizar diversos temas da poesia do século XI aqui no Garb, escolhi dois temas centrais e decisivos neste Sul Mediterrânico onde o Sol dá o tom certo da sensualidade dos corpos e o vinho produz a languidez da libertação dos sentido: o Amor e o Vinho; que terão marcado a nossa poética desde a segunda metade do século XI até ao início do XXI, embora o primeiro mais do que o segundo. Proponho-me, ainda que de uma forma breve e sintetizada, dar-vos conta desse percurso, passando por Afonso X, D. Dinis, Camões, Gil Vicente até à Canção de Coimbra nos séculos XIX e XX – mas em especial neste último -, O Canto de Intervenção e como fronteira do início da Nova Música Portuguesa, os discos editados no Outono de 1971, nomeadamente Cantigas do Maio.
Sem a pretensão de estudar exaustivamente numa perspectiva morfológica ou sintática a poesia Luso-Árabe, note-se, assim de igual modo a lírica portuguesa
O conhecimento do Cante alentejano e as modas da tradição oral do nosso Cancioneiro, cantadas à maneira, tantas vezes presenciado em recitais do cantautor e interprete Francisco Naia, campaniço, e Alentejano tal como eu possibilitou-se, in locco, novamente o encontro da música e da poesia, interpretada de uma forma tão genuína. Marcante foi também , uma noite durante um Festival de Música Popular na Casa da Música, no Porto, no Verão de 2007
(em que organizei a actuação do grupo Coral “O Amigos do Alentejo” do Feijó)
e, do final da actuação da Brigada Víctor jara, Janita Salomé intrepreta, a solo com Catarina Moura, Cantigas do Maio. Recordei de imediato as palavras de Manuel Alegre a propósito do seu belo disco Tão Pouco e Tanto:
Há no sul um silêncio povoado de sons, um misto de cigarras, zibelinas, besouros, uma espécie de zumbido do tempo, por vezes rasgado pelo grito do milhafre.
Se fosse pintor, pintá-lo-ia sob a forma de um traço branco em fundo azul. É esse risco ou esse grito ou esse traço que eu vejo na voz de Janita Salomé. E digo vejo, porque é uma voz que se ouve e vê, uma voz que nos traz o sol a tremular no descampado, ou a brancura de Casablanca à hora da oração do muezzin. Há nela, já se sabe, o grito do milhafre a pairar sobre a planície. E o zumbido. O som do tempo. E o silêncio. Mas há também a pergunta sem resposta do cante jondo, o cigano que esfarrapa a voz e a alma para chegar ao mais além. Há vários cantos neste cante. Vem de muito longe, de algum acampamento perdido na poeira dos séculos. Cante alentejano, cante jondo. Mas sobretudo andalu. É o tom essencial deste disco. Um regresso às origens. Um andalu moderno, um despojamento em que o canto nos deixa frente a frente com a voz integral, restituída a si mesma, sem outro suporte que o da sua própria nudez.
São de senhor os modos. Como o silêncio do sul, também a voz de Janita Salomé é nossa companheira.
Percorri todo este caminho até e com os cantores que no século XXI interpretam / ou interpretam-se eles próprios poetas e “escritores de canções” –- percebi que o Janita, o Vitorino, cantores do Sul e cantores do Amor como o Sérgio Godinho, o Rui Veloso, ou o Fausto, que cantando o Amor canta-o cantando o mar, ou o Trovante e o Luís Represas o canta “perdidamente”, ou o Naia cantor da saudade dos alentejanos na diáspora da sua Mátria, ou o Eduardo Ramos, alaudista da medivalidade-luso-árabe, ou o João Afonso “cantautor” de si próprio, reintepretando o génio do tio Zeca e …
Como principais objectivos, posso dizer:
Este trabalho apenas fala de duas coisas.:
Da beleza que é uma marca perene, desde os primórdios deste país até aos nossos dias, da beleza da grande poesia que, simultaneamente se tornou elo agregador da comunidade na aspiração do ressurgimento nacional
aconteceu, como em vários períodos históricos com Camões, aconteceu com os poetas como Alegre, Sophia, Florbela, Natália Correia, Gedeão, José Afonso (A Grândola símbolo e senha do 25 de Abril)
O outro aspecto é talvez mais ideológico. Mas não menos belo. É este contributo, decerto modesto, de tentar devolver a nossa História à comunidade, ao povo português, tentar trazer ao de cima a complexidade histórico-cultural que predominou em Portugal até à Expansão Marítima, esse caldo de cultura que certamente a possibilitou e até marca hoje a nossa poesia, a nossa música, a nossa identidade de gentes do Sul, sem que disso sempre nos apercebamos mas dando-nos conta interiormente, e que porventura foi irreversivelmente travada com a conversão forçada de uma parte da população – uma ampla minoria, ou seria uma maioria diversificada?
até porque o cristianização envernizada das divindades pagãs fazem deste um país largamente católico não praticante, mas praticante alegremente das festividades do Solstício (o S. João no Porto) ou o S. Martinho (em tudo o país, celebrando a Vida com o novo vinho).
Será que é tempo de assumirmos sem complexos a nossa identitária matriz mediterrânica milenar de que o período islâmico mais não terá feito do que síntese –– de todas as multi-milenares civilizações mediterrânicas, conhecimento e traços identitários depositados aqui no al-Andalus, no Garbe al-Andalus, memória e património intangível tão patente nas soleiras das casas do Sul, nas cores azul e ocre, no zumbido dos insectos, no silêncio, nos cheiros, nos sabores no triangulo feito do Pão, Azeite e Vinho. Feito do Cante. Feito de Poesia: o Amor e o Vinho, sempre presente ao longo dos tempos na nossa lírica.
Fui então na peugada de Almutâmide e visitei-o a ele e à sua Princesa Itimade, no exílio, na cidadela de Agâmate, a Sul de Marraquexe, às portas do Atlas, levando no bagagem duas rosas vermelhas para celebrar a Vida.
... percorri um imenso canavial como os que existem nas margens do Guadiana...
Os quase mil anos que nos distanciam de Almutâmide( 1040-1095), que segundo Adalberto Alves, terá nascido em Dezembro, precisamente há 970 anos, são pouco, muito pouco, pois lendo a sua poesia e da Ibne Amar, de Ibne Sara ou dos seus companheiros e grandes poetas dos séculos XI e XII, aqui na Garbe al.-Andalus, percebemos que eles falam do que nos é familiar, do que sentimos, vivemos, do Sol e do luar e que nos iluminam e encantam, sentimos a sua respiração, comem connosco à mesa, bebem connosco o vinho da fraternidade e da exaltação dos sentidos.
Ao deparar-me com este mundo maravilhoso percebi que estava tudo ligado, que esse mundo era o mundo de Camões e de Pessoa, de D. Dinis e de Roiz de Castelo Branco, de Bernardim Ribeiro, de Mestre Gil e até de Bocage, que era o mundo onde muitos dos grandes poetas dos séculos XIX e XX iam beber, consciente ou inconscientemente, mas irreversivelmente porque duma marca genética muito forte se trata. Que o Amor, e nalguns casos o vinho sempre foi cantado pelos poetas de todos os tempos, os nossos poetas, sempre foi cantado mesmo nos períodos mais difícieis de intervenção civíca e social e social, José Afonso e os seus companheiros sempre cantaram o Amor que sempre brotou da pena dos poetas de todos os tempos. No século XI, hoje, sempre.
Como dizia Mamuhd Darwich, poeta nacional da Palestina.
“A Poesia de intervenção, primeiro é poesia e só depois é que é de intervenção”
A beleza da grande Poesia onde o Amor foi e é tema foi a marca da perenidade, da genialidade nalguns casos, no Canto de Intervenção. Diferencia a excelência da Nova Música Portuguesa de outras posturas musicais. Não há uma norma, uma receita, uma regra. A Beleza não tem regras. Acontece… ou não."
Partilho três poemas de Almutâmide, em versões de Adalberto Alves, que em breve será evocado em Beja, para assinalar os 970 anos do seu nascimento:
“O Escudo”, é, como nos diz Adalberto Alves, um dos primeiros poemas conhecidos de Almutâmide, e que teria sido feito a mando de seu pai que lhe havia solicitado a descrição de um escudo de fundo azul, ricamente trabalhado a ouro e prata.
O Escudo
vede este escudo: seus autores
no céu foram colher inspiração
pra não ser plas lanças penetrado:
nele as Pléiades esculpiram
estrelas que auguram a vitória.
uma cercadura lhe deram d’ouro puro,
luz da manhã vestindo o horizonte.
Ou este dedicado a uma escrava que lhe ocultou o Sol:
Eclipse
ela levantou-se e ocultou
o brilho solar dos olhos meus.
assim fique oculta da má-sorte!
ela sabe que é uma lua.
e que melhor para ocultar o sol
senão a face da própria lua?
e um dos seus mais célebres poemas, inscrito n' As Mil e Uma Noites
Inocultável
Por receio de quem espia
com muita inveja a roer
ela não veio nesse dia,
para traída não ser
p´la luz que do rosto esplende,
p´las jóias a tilintar
e pelo perfume do âmbar
a que o corpo lhe rescende:
é que ao rosto, com o manto,
tapá-lo inda poderia,
e as jóias, entretanto,
facilmente as tiraria,
mas a fragância do encanto,
p´ra ocultá-la, que faria?
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