31 de dez. de 2010

Pablo Neruda, Almutâmide ou a plenitude do Amor...

A Pergunta


Amor, uma pergunta minha
dilacerou-te.


Regressei a ti
da incerteza com espinhos.


Quero-te direita como
a espada ou o caminho.


Mas tu insistes
em manter uma curva
de sombra que não gosto.


Meu amor,
compreende-me,
quero tudo o que é teu,
dos olhos aos pés, às unhas,
por dentro,
toda a claridade, que escondias.


Sou eu, meu amor,
quem bate á tua porta.
não é um fantasma, não é
o que um dia parou
à tua janela.
Eu deito a porta abaixo:
eu entro na tua vida.
venho viver na tua alma:
tu não podes comigo.

Tens de abrir todas as portas,
tens que obedecer-me,
tens de abrir os olhos
para eu os observar,
tens de ver como ando
com passos pesados
por todos os caminhos
que, cegos, me esperavam.


Não tenhas medo,
sou teu,
mas
não sou viajante nem mendigo,
sou o teu senhor,
aquele que esperavas,
e agora entro
na tua vida
para não mais sair,
amor, amor, amor,
para ficar.

Pablo Neruda, Os Versos do Capitão, Campo das Letras, Porto, 1996


Antes não me tinha sido dada a sublime dádiva de conhecer este poema e a plenitude... e quando ficava exausto, ao perseguir a minha luta, ficava a pensar numa frase... um pensamento que assaltava o aviador do Vol de Nuit, já irremediavelmente condenado - porque sabia que o combustível não seria suficiente para chegar ao aeródromo e despenhar-se-ia nas montanhas - e mesmo assim prosseguia, vendo lá em baixo, ao sobrevoar a sua última cidade, os burgueses nos seus fatos domingueiros, esperando que o tempo circulasse sem os ver, escondendo-se da Vida atrás da rotina do banco de jardim e da leitura interminável do jornal, tão cheios de comodidades, tão "pobres", tão tristes, e a personagem pensava e eu com ela, que eles ao menos não sofriam a inquietação, tão esquivos de sonhar... será que eles, ao menos, tinham uma "sensata felicidade" embora rotineira, pouco ambiciosa, sem altos e baixos, pensava a personagem e eu com ela...
é que ainda não me fora dado saborear este poema... e a felicidade em toda a sua plenitude... agora sei que não é assim... e só posso partilhar a Luz, a minha Luz, eu que sou apenas ninguém e o infinito, que aprendo uma e outra e mil vezes de novo a andar, a caminhar, partilhar a Luz fulgurante que me ilumina, partilhá-la com os corações adormecidos entre o medo e a comóda luz mortiça da desistência de se atingir a plenitude de si própria, partilhar... partilhar sempre, entre o sofrimento e a luminosa e resplandescente Verdade.
Partilho com todos vós um excerto, breve, da apresentação que fiz nas provas de doutoramento, não per si, mas a pensar em Almutâmide, que terá nascido por estes dias deste mês de Dezembro, há precisamente 970 anos na doce Cidade da Planície, a Baja muçulmana de pétalas de rosas vermelhas e ornada de árvores, na sua praça central, de tilia que só florescem mais para o fim da Primavera...

"E depois de tentar sistematizar diversos temas da poesia do século XI aqui no Garb, escolhi dois temas centrais e decisivos neste Sul Mediterrânico onde o Sol dá o tom certo da sensualidade dos corpos e o vinho produz a languidez da libertação dos sentido: o Amor e o Vinho; que terão marcado a nossa poética desde a segunda metade do século XI até ao início do XXI, embora o primeiro mais do que o segundo. Proponho-me, ainda que de uma forma breve e sintetizada, dar-vos conta desse percurso, passando por Afonso X, D. Dinis, Camões, Gil Vicente até à Canção de Coimbra nos séculos XIX e XX – mas em especial neste último -, O Canto de Intervenção e como fronteira do início da Nova Música Portuguesa, os discos editados no Outono de 1971, nomeadamente Cantigas do Maio.


Sem a pretensão de estudar exaustivamente numa perspectiva morfológica ou sintática a poesia Luso-Árabe, note-se, assim de igual modo a lírica portuguesa

O conhecimento do Cante alentejano e as modas da tradição oral do nosso Cancioneiro, cantadas à maneira, tantas vezes presenciado em recitais do cantautor e interprete Francisco Naia, campaniço, e Alentejano tal como eu possibilitou-se, in locco, novamente o encontro da música e da poesia, interpretada de uma forma tão genuína. Marcante foi também , uma noite durante um Festival de Música Popular na Casa da Música, no Porto, no Verão de 2007
(em que organizei a actuação do grupo Coral “O Amigos do Alentejo” do Feijó)
e, do final da actuação da Brigada Víctor jara, Janita Salomé intrepreta, a solo com Catarina Moura, Cantigas do Maio. Recordei de imediato as palavras de Manuel Alegre a propósito do seu belo disco Tão Pouco e Tanto:

Há no sul um silêncio povoado de sons, um misto de cigarras, zibelinas, besouros, uma espécie de zumbido do tempo, por vezes rasgado pelo grito do milhafre.


Se fosse pintor, pintá-lo-ia sob a forma de um traço branco em fundo azul. É esse risco ou esse grito ou esse traço que eu vejo na voz de Janita Salomé. E digo vejo, porque é uma voz que se ouve e vê, uma voz que nos traz o sol a tremular no descampado, ou a brancura de Casablanca à hora da oração do muezzin. Há nela, já se sabe, o grito do milhafre a pairar sobre a planície. E o zumbido. O som do tempo. E o silêncio. Mas há também a pergunta sem resposta do cante jondo, o cigano que esfarrapa a voz e a alma para chegar ao mais além. Há vários cantos neste cante. Vem de muito longe, de algum acampamento perdido na poeira dos séculos. Cante alentejano, cante jondo. Mas sobretudo andalu. É o tom essencial deste disco. Um regresso às origens. Um andalu moderno, um despojamento em que o canto nos deixa frente a frente com a voz integral, restituída a si mesma, sem outro suporte que o da sua própria nudez.

São de senhor os modos. Como o silêncio do sul, também a voz de Janita Salomé é nossa companheira.

Percorri todo este caminho até e com os cantores que no século XXI interpretam / ou interpretam-se eles próprios poetas e “escritores de canções” –- percebi que o Janita, o Vitorino, cantores do Sul e cantores do Amor como o Sérgio Godinho, o Rui Veloso, ou o Fausto, que cantando o Amor canta-o cantando o mar, ou o Trovante e o Luís Represas o canta “perdidamente”, ou o Naia cantor da saudade dos alentejanos na diáspora da sua Mátria, ou o Eduardo Ramos, alaudista da medivalidade-luso-árabe, ou o João Afonso “cantautor” de si próprio, reintepretando o génio do tio Zeca e …

Como principais objectivos, posso dizer:

Este trabalho apenas fala de duas coisas.:

Da beleza que é uma marca perene, desde os primórdios deste país até aos nossos dias, da beleza da grande poesia que, simultaneamente se tornou elo agregador da comunidade na aspiração do ressurgimento nacional
aconteceu, como em vários períodos históricos com Camões, aconteceu com os poetas como Alegre, Sophia, Florbela, Natália Correia, Gedeão, José Afonso (A Grândola símbolo e senha do 25 de Abril)

O outro aspecto é talvez mais ideológico. Mas não menos belo. É este contributo, decerto modesto, de tentar devolver a nossa História à comunidade, ao povo português, tentar trazer ao de cima a complexidade histórico-cultural que predominou em Portugal até à Expansão Marítima, esse caldo de cultura que certamente a possibilitou e até marca hoje a nossa poesia, a nossa música, a nossa identidade de gentes do Sul, sem que disso sempre nos apercebamos mas dando-nos conta interiormente, e que porventura foi irreversivelmente travada com a conversão forçada de uma parte da população – uma ampla minoria, ou seria uma maioria diversificada?

até porque o cristianização envernizada das divindades pagãs fazem deste um país largamente católico não praticante, mas praticante alegremente das festividades do Solstício (o S. João no Porto) ou o S. Martinho (em tudo o país, celebrando a Vida com o novo vinho).

Será que é tempo de assumirmos sem complexos a nossa identitária matriz mediterrânica milenar de que o período islâmico mais não terá feito do que síntese –– de todas as multi-milenares civilizações mediterrânicas, conhecimento e traços identitários depositados aqui no al-Andalus, no Garbe al-Andalus, memória e património intangível tão patente nas soleiras das casas do Sul, nas cores azul e ocre, no zumbido dos insectos, no silêncio, nos cheiros, nos sabores no triangulo feito do Pão, Azeite e Vinho. Feito do Cante. Feito de Poesia: o Amor e o Vinho, sempre presente ao longo dos tempos na nossa lírica.

Fui então na peugada de Almutâmide e visitei-o a ele e à sua Princesa Itimade, no exílio, na cidadela de Agâmate, a Sul de Marraquexe, às portas do Atlas, levando no bagagem duas rosas vermelhas para celebrar a Vida.
... percorri um imenso canavial como os que existem nas margens do Guadiana...

Os quase mil anos que nos distanciam de Almutâmide( 1040-1095), que segundo Adalberto Alves, terá nascido em Dezembro, precisamente há 970 anos, são pouco, muito pouco, pois lendo a sua poesia e da Ibne Amar, de Ibne Sara ou dos seus companheiros e grandes poetas dos séculos XI e XII, aqui na Garbe al.-Andalus, percebemos que eles falam do que nos é familiar, do que sentimos, vivemos, do Sol e do luar e que nos iluminam e encantam, sentimos a sua respiração, comem connosco à mesa, bebem connosco o vinho da fraternidade e da exaltação dos sentidos.

Ao deparar-me com este mundo maravilhoso percebi que estava tudo ligado, que esse mundo era o mundo de Camões e de Pessoa, de D. Dinis e de Roiz de Castelo Branco, de Bernardim Ribeiro, de Mestre Gil e até de Bocage, que era o mundo onde muitos dos grandes poetas dos séculos XIX e XX iam beber, consciente ou inconscientemente, mas irreversivelmente porque duma marca genética muito forte se trata. Que o Amor, e nalguns casos o vinho sempre foi cantado pelos poetas de todos os tempos, os nossos poetas, sempre foi cantado mesmo nos períodos mais difícieis de intervenção civíca e social e social, José Afonso e os seus companheiros sempre cantaram o Amor que sempre brotou da pena dos poetas de todos os tempos. No século XI, hoje, sempre.

Como dizia Mamuhd Darwich, poeta nacional da Palestina.

“A Poesia de intervenção, primeiro é poesia e só depois é que é de intervenção”

A beleza da grande Poesia onde o Amor foi e é tema foi a marca da perenidade, da genialidade nalguns casos, no Canto de Intervenção. Diferencia a excelência da Nova Música Portuguesa de outras posturas musicais. Não há uma norma, uma receita, uma regra. A Beleza não tem regras. Acontece… ou não."

Partilho três poemas de Almutâmide, em versões de Adalberto Alves, que em breve será evocado em Beja, para assinalar os 970 anos do seu nascimento:


“O Escudo”, é, como nos diz Adalberto Alves, um dos primeiros poemas conhecidos de Almutâmide, e que teria sido feito a mando de seu pai que lhe havia solicitado a descrição de um escudo de fundo azul, ricamente trabalhado a ouro e prata.



O Escudo


vede este escudo: seus autores
no céu foram colher inspiração
pra não ser plas lanças penetrado:
nele as Pléiades esculpiram
estrelas que auguram a vitória.
uma cercadura lhe deram d’ouro puro,
luz da manhã vestindo o horizonte.




Ou este dedicado a uma escrava que lhe ocultou o Sol:

Eclipse


ela levantou-se e ocultou
o brilho solar dos olhos meus.


assim fique oculta da má-sorte!
ela sabe que é uma lua.

e que melhor para ocultar o sol
senão a face da própria lua?



















e um dos seus mais célebres poemas, inscrito n' As Mil e Uma Noites

Inocultável



Por receio de quem espia
com muita inveja a roer
ela não veio nesse dia,
para traída não ser
p´la luz que do rosto esplende,
p´las jóias a tilintar
e pelo perfume do âmbar
a que o corpo lhe rescende:
é que ao rosto, com o manto,
tapá-lo inda poderia,
e as jóias, entretanto,
facilmente as tiraria,
mas a fragância do encanto,
p´ra ocultá-la, que faria?

24 de dez. de 2010

Viver também cansa...

O Natal é um data triste... o mais feliz talvez tenha sido há, há muito tempo, há mais de 40 anos, quando recebi um brinquedo dado pelo minha doce a saudosa avó Irene. Gritei de alegria... a reacção do meu neto ontem quando lhe levei um comboio com uma pista - como nunca tive  - mas afinal não era tão mágico como eu gostaria, mas ele adorou e isso amenizou-me a tristeza.
Já me aconteceram muitas coisas no Natal: desde um acidente ferroviário, sem consequências físicas, quando era adolescente, positivista e ateu convicto e deambulava sozinho, apenas curioso e descrente a visitar a Missa do Galo, ou já adulto, quando, por opção passei a Noite de Natal em Barrancos - onde o Natal é festejado na Praça central com o povo a conviver colectivamente, com o meu Amigo João Honrado, e depois a convite do meu Amigo António Tereno - num mandato em que ele não era o Presidente da Autaquia mas o povo tratava-o como tal -  fomos uns breves instantes à Missa do Galo; ou ainda quando em trabalho de campo, na aldeia de Ousilhão, Vinhais, Trás-os-Montes, vivi intensamente as Festividades Pagãs, refiro-me à Festa dos Rapazes.
Eu sou um pássaro e se me sinto prisioneiro como me agora acontece - o telémovel meio avarido, o carro avariado que não me permite ir respirar o meu Alentejo - acabo por não ser boa companhia para ninguém. Quando ainda menino, não compreendia os pássaros, cheguei a aprisioná-los em gaiolas, uma ou duas vezes chegaram a morrer... eu pensava que era de fome ou de sede... levei muito tempo a perceber que também se morre de tristeza... a tristeza erradia-se com um sorriso lumionoso ou uma palavra de uma voz doce...

Hoje li uma frase de Stravinski  que com vós partilho... apesar de enorme tristeza ainda continuo, tento continuar a acreditar, a acreditar na Beleza, na Beleza, na Fraternidade, por isso partilho também um poema de Ary dos Santos, interpretado genialmente pelo Zeca Afonso, apesar de me sentir prisioneiro do que o Homem inventou, mas que afinal não lhe traz felicidade: há um século, há muitas décadas, não seria prisioneiro de carros, de telémoveis, até de mim própio... Viver também cansa!...

A todos os meus Amigos (as) e todos os que passarem por aqui, peço-vos encarecidamente:
SEJAM FELIZES!!!!....



O acto de criar precisa de uma força dinâmica, e que força é mais potente do que o amor?


                                    Igor Stravinski







A cidade é um chão de palavras pisadas






A cidade é um chão de palavras pisadas


a palavra criança a palavra segredo.


A cidade é um céu de palavras paradas


a palavra distância e a palavra medo.






A cidade é um saco um pulmão que respira


pela palavra água pela palavra brisa


A cidade é um poro um corpo que transpira


pela palavra sangue pela palavra ira.






A cidade tem praças de palavras abertas


como estátuas mandadas apear.


A cidade tem ruas de palavras desertas


como jardins mandados arrancar.






A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.


A palavra silêncio é uma rosa chá.


Não há céu de palavras que a cidade não cubra


não há rua de sons que a palavra não corra


à procura da sombra de uma luz que não há.


                                                   José Carlos Ary dos Santos

19 de dez. de 2010

Entre a Terra e o Mar


"Amo-te" é o título de um projecto onde coexistem Escultura, Desenho e Projecção Vídeo, de Marco Fidalgo, patente desde dia 11 de Dezembro no Galeria 9Ocre, no âmbito de um conjunto de exposições e eventos organizadas nesta data na referida galeira  e no Convento de S. Francisco, pela Associação Cultural de Montemor-o-Novo "Oficinas do Convento". Resultante de residências artísticas levadas a cabo em 2010 nas áreas da música, escultura, poesia visual, fotografia e design de equipamento sob o tema "Da terra e do ar" e dos conceitos de peso, e de que foram seleccionados seis projectos, entre eles "Amo-te" de Marco Fidalgo, que logrou instalar as pranchas de cortiça retiradas de um sobreiro da Adua, que nesta instalação na Galeria 9Ocre ultrapassa os três metros. Curiosamente,  Marco Fidalgo, o autor, que aqui trabalha a terra quente e voluptuosa do Sul, vive no Porto... mas é natural de Setúbal, cidade de mar e rio azul turquesa....

ou a Terra neste poema de Martinho Marques, Poeta e Amigo de Beja, poema em que tanto me revejo...

A terra à beira da noite


Com o vagar da sombra da lonjura
que a tarde entorna sobre o descampado,
a distância prolonga-se e perdura
para além deste tempo limitado.


Vem de longe o aroma a terra pura
repetir as lavoiras do passado
e eu sou a mais estranha criatura
sobre a terra que sonha o céu estrelado.


O poente põe luzes na cidade,
mas a cidade nem sequer supõe
a luz dolente que o poente encerra.


Nada me sei, todo me sinto e há-de
ser sempre assim que o sol quando se põe
me põe a mim a prolongar a terra.

in Uma terra nos planos do mar, Martinho Marques (poemas) António Cunha (fotografias), Região de Turismo Planície Dourada, Beja, 1997


... muito perto de outro rio - naquele grande braço de mar interior, conhecido como Mar da Palha, em que o Tejo se espraia em frente a Lisboa em direcção aos suaves montes da Arrábida - no espaço municipal de exposições do Miratejo, fomos surpreendidos por outra exposição, composta por um conjunto de trabalhos da pintora Luísa Gonçalves, em acrílico, que têm a particularidade de serem pintados directamente, sem o uso do pincel, e onde também surge o Desenho a carvão; visões oníricas de percursos e vivencias, onde a artista se desnuda no seu eu mais profundo perante a sensual vertigem da tentação da lasciva fusão com o Mar imenso... e sempre presente.




















ou o Mar nest'outro belo e pungente poema de Martinho Marques....

A rapariga de Cochim


Disseram que, por ficar,
eu fora fiel ao rei
ou ao mar,
mas eu não sei.


Sei que na fímbria dos mares,
depois das ondas bravias,
vim descobrir que há olhares
melhores que especiarias.




Ela era ainda tão cedo,
que mal saíra de casa.
Tinha no corpo um segredo,
tinha nos olhos a Ásia.



(…)



Tinha nas mãos tropicais
o aroma de benjoim,
tinha fascínio de mais,
tinha domínio de mim.


(…)



Tinha o que faz o sentido,
tinha na voz o recado,
tinha o que eu tinha perdido,
tinha o que eu tinha sonhado.



Fez-me de irmão e de escravo,
tinha o que eu tinha por ela.
Tinha nos lábios o cravo,
tinha na pele a canela..



Foi por ela que fiquei
e, se fui fiel, não sei
se foi ao rei
ou a ela.


in mítica e íntima Índia, António Cunha (fotografias) Martinho Marques (textos), Região de Turismo Planície Dourada, Beja, 1998

9 de dez. de 2010

Florbela, a ânsia desmesurada de infinito... na Liberdade e no Amor



Ontem, 8 de Dezembro, dia da Nossa Senhora da Conceição, os Amantes da Poesia  todo o mundo assinalaram, evocaram, até interiormente, os 80 anos da morte de Florbela Espanca. Neste blogue essa data nunca foi esquecida.
Florbela nasceu e morreu no dia 8 de Dezembro. Nasceu no meu doce e infinito Alentejo e suicidou-se 36 depois em Matosinhos, numa casa de uma rua estreita perto do Mar, cidade que perpetua o seu nome numa suave Biblioteca e num Festival de Poesia que acontece entre 6 e 8 de Dezembro, todos os anos. Também Vila Viçosa, que a viu nascer não olvida a sua diva, onde descansa num singelo mausóleu, onde em 2006 me foi dada viver momentos únicos.

Tenho eu, grau da areia ou gota de oceano, com esta Mulher Poderosa e Sublime, nome maior da Poesia universal, em comum ter nascido no mesmo dia, e... talvez também, essa "necessidade desmesurada, infinta mesmo de Liberdade", como um dia alguém, que me conhece bem, me caracterizou depois de parafrasear De Gaulle, referindo-se a um Embaixador sírio, de quem recebia a crendenciais:" conheço-vos as areias e os desertos".

Acrescentaria, também me une a Florbela esse anseio imenso e fremente de Amor, de Amar e ser Amado.


Do nascimento distanciam-nos duas breves horas, entre as 2 e as 4 horas nocturnas.


Partilho dois poemas, entre muitas possíveis, um deles já aqui publicado, mas que não posso deixar esquecer hoje, talvez personificadores dessa  grande Alma feita para a Liberdade e para o Amor: não se opõem, completam-se!




Não sou de ninguém!


Eu não sou de ninguém!... Quem me quiser
Há-de ser luz do Sol em tardes quentes;
Nos olhos de água clara há-de trazer
As fúlgidas pupilas dos videntes!


Há-de ser seiva no botão repleto,
Voz no murmúrio do pequeno insecto,
Vento que enfurna as velas sobre os mastros!...


Há-de ser Outro e Outro num momento!
Força viva, brutal, em movimento,
Astro arrastando catadupas de astros!




Ser Poeta


Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Áquem e de Além Dor!


É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhas de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!


E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!
                                       Florbela Espanca

 
Depois de um dia intenso em que familiares e amigos me brindaram com muitas provas de carinho e de fraternidade, entre fartos e bem regados repastos, ao anoitecer, um pequeno grupo de Amigos - porque os verdadeiros Amigos são poucos mas poderosos e imprescíndiveis, para além da necessidade permanente do Infinito, outras coisas suaves me ofertaram - essas coisas subtis e "confortáveis" - e se faltaram as rosas vermelhas, hove Vinho Tinto (o poderoso Cartuxa 2007), canetas, música, muita música e... até um retrato feito com rotring e vinho, pelo Amigo pintor Manuel Casa Branca. Sei outros(as) Amigos(as) por motivos impresvistos de última hora não estiveram. Um grande bem haja aos Amigos (as) Manel, Natacha, Céu, Ramos, Constantino e Zé Carita, que me cantaram os votos da fraterna Amizade nas velas de um bolo que dizia: "parabéns maltês!".
Deles  partilho este retrato e estes discos, que aconselho.









ao chegar a casa, deparei-me com uma mensagem: este soneto que a Amiga Maria Vitória Afonso me dedicou, que humildemente agradeço (meio sem jeito) e... partilho!


Eduardo, o Sábio Amigo




Enquanto o comboio riscava a paisagem
Ali na Funcheira perto de Garvão
Nascia o filho de uma mãe coragem
Fruto de amor e de grande paixão.


Longos plainos lhe deram percepção
Do mundo antigo, de sonho e miragem.
E impõe-lhe misteriosa a intuição
Tirar do vazio a mítica personagem.

Herdeiro da civilização mediterrânica
Do Alentejo privilegia a panorâmica
E evoca Almutâmide o árabe poeta.

E fazendo jus a seus antecedentes
O fio condutor assim, sem precedentes
Estabelece, na obra que o projecta.

                                              Maria Vitória Afonso

6 de dez. de 2010

A propósito da Beleza

A Beleza não tem regras.    Acontece... ou não.


Foi assim que acabei a apresentação da minha tese de Doutoramento, na passada 6ª feira, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/Universidade Nova de Lisboa, intitulada
"Fundamentos Históricos da Poesia Luso-Árabe ( no século de Almutâmide) na Nova Música Portuguesa. O Amor e o Vinho".
Perante um júri  presidido pela representante do Reitor e do Conselho Científico, onde fizeram a arguência principal António Borges Coelho e Manuel Freire, e com a participação de António Pedro Vicente (orientador), assim como Fernando Rosas, Sérgio Campos de Matos, Fernanda Abreu, Luís Farinha, Gabriela Terenas e Manuel Loff, e... apesar dos protocolos, terminei com a leitura de dois dos mais belos poemas de Almutâmide, ambos versão de Adalberto Alves - o  primeiro cantado por Eduardo Ramos no seu disco Cântico para Al Mutamid

Itimad



Invisível a meus olhos
Trago-te sempre no coração
Te envio um adeus feito paixão
E lágrimas de pena com insónia.
Inventaste como possuir-me, e eu
O indomável tão submisso vou ficando
Meu desejo é estar contigo sempre
Oxalá se realize tal vontade
Assegura-me que o juramento que nos une
Nunca a distância o fará quebrar.
Doce é o nome que é o teu
E fica escrito no poema: I’ timâd.




Poder


meu olfacto é teu odor delicioso
e o teu rosto o senhor dos olhos meus,
por seres minha, mesmo depois do adeus,
é que todos me chamam poderoso.

Perante uma assistência que quase enchia a sala, composta por Amigos: cantores, músicos, poetas, como o Francisco Naia, o Janita Salomé, o maestro Manuel Jerónimo, a Maria vitória Afonso e o Amadeu, a Joseia Matos Mira e esposo, o Francisco Pinto, o António Silva, o Ferraz da Conceição, o Teixeira, entre outros, e claro, os meus pais, os meus irmãos Carlos e Ricardo e a minha filha Sofia. Outros amigos, que sei que gostariam de estar, não lhes foi possível pelos mais diversos motivos: trabalho, saúde, obrigações familiares, etc... outros ainda, enviaram mensagens de solidariedade, e foram muitos: o Sérgio Godinho, o Jorge Souto (que está em Luanda), o Manuel Malheiros, o Francisco do Ó, o joão Paulo Ramôa, o António Nabo (perdoem-me os que não refiro, pois de facto foram muitos amigos)... ainda assim, os Amigos (e o Alentejo e a Poesia) estiveram bem representados ...
Depois, ao fim da tarde Almutâmide e o Amor não deixaram de ser (de novo) simbólica e interiormente evocados ao som do silêncio de um belo tinto de Estremoz, no Pateo Árabe da Casa do Alentejo, por entre pétalas de rosa, exactamente no mesmo local onde se lançou, há quase uma década, um suave livro ao som de cânticos medievais (sefarditas).

foto retirada da NET

Partilho connvosco um poema - seguramente um dos mais belos - de José Afonso, que já publiquei algures neste blogue, mas que
tem a particularidade de abrir este tese de Doutoramento, assim como  a Nota de Abertura... que agora já se pode divulgar...

Maria



Maria
Nascida no monte
À beira da estrada
Maria
Bebida na fonte
Nas ervas criada


Talvez
Que Maria se espante
De ser tão louvada
Mas não
Quem por ela se prende
De a ver tão prendada


Maria
Nascida do trevo
Criada no trigo
Quem dera
Maria que o trevo
Casara comigo


Prouvera
A Maria sem medo
Crer no que lhe digo
Maria
Nascida no trevo
Beiral do mendigo
Maria
Nascida no trevo
Beiral do mendigo


Maria
De todas primeira
De todas menina
Maria
Soubera a cigana
Ler a tua sina


Não sei
Se deveras se engana
Quem demais se afina


Maria
Sol da madrugada
Flor de tangerina


Maria
Sol de madrugada
Flor de tangerina


José Afonso
(Cantares de José Afonso – 1964)






Nota de Abertura


" Poesia da Música ao som da Pintura




Este trabalho foi escrito no Sul. E, mesmo quando pontualmente ali não estava fisicamente, o Sul estava-me no corpo, estava-me no olhar, era o sabor do Sul que tinha nos lábios.


Havia telas com o Sul na alma, havia Música, havia Poesia, havia a amizade fraterna do meu amigo Manel (o pintor Manuel Casa Branca).


O meu mundo era o seu simpático e suave atelier e era o castelo – o castelo mais bonito de todos, não só pelas suas ruínas e pela imagem de longe, muito doce harmoniosa, mas também quando caminhamos por entre o Paço do Alcaide, nas suas etéreas ruínas, tão românticas.


O meu mundo era as amoras que colhia diariamente na Ecopista e me deliciava com cada recanto daquele lugar paradisíaco, lugar solar ou nocturno, onde eu gostava de caminhar ao anoitecer.


Escrevia e esperava. A minha rotina era então uma descoberta permanente, um deslumbramento quase contínuo por cada pedra, cada monte em ruínas. Escrevia, caminhava. Escrevia e esperava, esperava serenamente…"


Este Doutoramento dedico-o aos Amigos (as) que das mais diversas formas me apoiaram e incentivaram, dedico-o ao Alentejo e à Beleza!

... a propósito da Beleza...

2 de dez. de 2010

Ó branca e vermelha



Castanho o cabelo
Mas louro por dentro


Azuis olhos verdes
de mar      de arvoredo


Ó branca e vermelha
desde os tornozelos


até às alturas
dos ombros       da nuca


Nem saia nem manto
Só te quero nua

Os teus e os meus dedos
do mesmo tamanho


correias trocando
mais fortes que tudo


Ó branca no peito
vermelha na boca

Ó branca e vermelha
na rosa do corpo


de rubra incendeias
de branca me assombras


E branca e vermelha
deitada a meu lado
só nua desejas
vibrar no retrato

 
David Mourão-Ferreira,
Os Ramos. Os Remos, Areal Editores, Porto, 1985