31 de dez. de 2006

Vida

A execução de Saddam Hussein está eminente, leio ontem nos jornais.
Quando escrevo o enforcamento do ditador iraquiano já foi consumado.
2006 não podia terminar de forma pior!
Indignação! Revolta! É o que sinto!...
Orgulho-me de ser cidadão do primeiro país do mundo que aboliu a pena de morte!
Brandos costumes?... talvez não. Sim uma postura cimentada num passado longínquo de mil anos de história – onde o Ocidente foi beber o pensamento filosófico e uma cultura de tolerância e de respeito pelo outro – onde, neste país, no Sul peninsular, existiu tolerância e coexistência pacífica permitia a prática simultânea das três religiões monoteístas, e certamente da religiosidade popular – que com tanta pujança chegou até aos nossos dias …
Estou a falar, como já perceberam, do apogeu civilizacional islâmico, que no Garb Al Andalus, foi luso-árabe, quando era rei em Sevilha um poeta nascido em Beja e que fez de Silves a primeira cidade lusa, talvez a única, onde a poesia fez de uma escrava rainha. Estou a falar-vos de Intimad, a Paixão do príncipe Al Mouhatamid Ibn Abbad…e depois deu-se um interregno de quase mil anos e a tolerância religiosa só reapareceu nas últimas décadas do século XX. Curiosamente, ou não talvez, dum período historicamente curto, nos séculos XI e XII, chegaram-nos belos, muito belos poemas de mais quatro dezenas de poetas… o que, quantitavamente só no século passado voltou a acontecer …
Talvez porque tolerância, respeito pelo outro, saber, humanismo… andam de mãos dadas com a poesia, a mais bela expressão do ser humano - a poesia escrita, a poesia que existe também na música, nas artes plásticas, na arquitectura, no cinema, no teatro… a poesia, suprema realização do belo, do sublime…
O radicalismo, o fundamentalismo veio reeditar as tristemente célebres cruzadas que tantos milhares de seres pacíficos massacraram na Palestina de então…
O sentir do cidadão comum, que vê em cada árabe um terrorista indigna-me, revolta-me!... o mesmo cidadão que provavelmente acha acertado e talvez se regozije com este acto de intolerância e hipocrisia, agora cometido em Bagdad…
A indignação e a revolta que sinto, embora temperada com a serenidade que os anos me deixaram, os anos e as vivências intensas entre a felicidade plena e o sofrimento…
Todavia revolta! Todavia indignação!
Não aceito, não me revejo neste mundo de intolerância, de hipocrisia, de ausência do que é a essência da Vida!
Mas indigno-me, mas revolto-me activamente, positivamente, como ser interveniente, tentando contribuir, pedra a pedra, degrau a degrau, para ser melhor, na interiorização, na partilha do belo, do que é bonito, do que é profundo, no que é a essência, seja na mais intimista contemplação do mar imenso e no sentir do cheiro revigorante da terra… e também no debate de ideias, na escrita, na publicação – numa postura a que chamam cidadania, substantivo politicamente correcto que nem me seduz particularmente…
A natureza. A comunhão com a natureza…
A poesia é pouco, muito pouco, perante a morte… assim, fria… brutal!... dirão…
Penso que não. Deixo-vos um poema que nos fala da força suprema, avassaladora da Natureza, onde reside a Vida, onde reside a capacidade de Amar, a capacidade de ser feliz, razão primeira de estarmos aqui, vivos!...





"Laranjas são brasas vivas sobre ramos
Ou rostos espreitando entre colinas verdes?
E a ramaria, folhas que baloiçam
Ou formas frágeis que nos causam pena?

Vejo-te laranjeira com os teus frutos,
Lágrimas rubras dos tormentos do amor.
São sólidos mas, se fundidos, vinho seriam
Moldadas pelas mãos mágicas da natureza.
São bolas de cornalina sobre ramos de topázio
Com o açoite da brisa que lá as vai fustigar.
Porque tais frutos beijamos
Ou seu cheiro aspiramos
Eles às vezes nos parecem
Ou rostos de raparigas
Ou pomos feitos perfume."


Ibn Sara
(nascido em Santarém no séc. XI)

27 de dez. de 2006

Sofia

Este é um lugar de afectos!...

Sofia...
Na noite anterior ao seu nascimento caminhei na cidade branca... acompanhava-me um amigo, o LF, que depois pintou o momento inicial para ela... talvez o seu gosto por pintura... a sua paixão pelo teatro vem certamente do primeiro encontro dos seus progenitores, um dia num espaço cénico...hoje, tantas luas depois, deu-me um beijo muito doce e recordei-a bebé de poucos meses, os seus olhos lindos e expressivos - reminiscência certamente de um lugar algures ao Sul -, procurando-me quando chegava, quando a passeava no carrinho, o seu sorriso era como uma nascente de água... eu era então a luz do seu olhar...
Numas férias recentes confidenciou-me, quando mergulhavamos numa praia de corais turquesa, que tinha saudades quando brincavamos no mar.. e a dor dilacerante que senti num desses momentos só nossos, quando um peixe aranha a picou e eu... senti como se me tivessem apunhalado, que devia ter sido a mim...
A primeira vez que fez teatro foi uma experiência imensa... que partilhei noutro blog...
voltou a fazer teatro... e em breve vai estrear A Bela e o Monstro ... Belinda, bela e linda...
hoje já tem o seu Amor, que vive de uma força apaixonada, avassaladora, plena... ela sabe que não há nada mais importante que o Amor!... sabemos, vivemos ambos!... a minha pequena Sofia... Belinda...
hoje deu-me um beijo tão doce...
Este é um lugar de afectos!

22 de dez. de 2006

Loendro


no editorial desta revista que acaba de sair, pode ler-se...

Um hino à Vida! … o direito de ser Deus!

Vou a caminho do Alandroal e penso que certamente 2007 vai ser um ano luminoso, melhor…oiço Vitorino, alguns dos mais bonitos poemas de Amor cantados com sotaque alentejano, e também o seu irmão Janita, mas antes “deixa-me dormir uma noite/ Oh Laurinda, linda, linda/ que és mais linda do que ó Sol”” e “Canta-me um pássaro no peito/ como um cavalo no prado” na “Litania… para o meu amor ausente” talvez até diga adeus ao Sado, o outro rio grande do Sul, mas antes que me vá embora “não esqueças o tal encontro/ marcado no roseiral”. O mano vindo do Sul, das “Tardes de Casablanca”, para onde antepassados nossos se exilaram quando partiram daqui, do paraíso, Garb- Al Andalus, Atlântida, terra prometida e porque depois “os rios de Espanha choram de tristeza”, porque o Sul, se Alegre fosse pintor seria “um traço branco em fundo azul. Um risco, nada mais do que um risco.” Sol, sal, planície, Sol, decerto Amor disse Almouthamid “a uma escrava que lhe ocultou o Sol”, reflectido nas águas do rio Arade pois”quem pode eclipsar o sol senão a face da lua?”. Onde o cante é cigano e “a nuvem com uma das mãos tece os fios de chuva/enquanto com a outra borda flores de enfeitar”, no dizer de Ibn Sara, no “Zéfiro e a chuva”, porque ”Não é fácil o Amor”, mas encontro nos caminhos de maltês um “sinal de ti”, e sei e dou comigo a pensar, Amor meu, quando longe e ausente e triste estás “Que bonitos/são teus olhos a chorar. Quem me dera/Matar a sede à garganta/Com as águas/Que correm no teu olhar” tu meu amor, que escreves com os olhos.
Chego ao Alandroal com a voz bela dos meus companheiros inseparáveis, de viagem.
E em Bagdad, onde havia mil jardins como aqui, no califado de lá, homens rudes e seus apaniguados, hoje condenaram um homem à morte, e mataram mil, muitos mil, invadindo, humilhando, eles, senhores das armas, descobridores recentes de “L’ étranger” de Camus, e certamente nunca os seus lábios provaram um vinho casto e sensual como a poesia que brotava há mil anos dos nossos primeiros poetas alentejanos; poesia, vinho … Alentejo.
Alandroal, senhor da Cura, Endovélico há muitos mil anos iam peregrinar, adorar…pré e depois celta, romano, cristão, imagem deste Concelho nas margens do Guadiana, onde o Município soube procurar, reencontrar o passado, a memória e tantas moiras encantadas… Arqueólogos, pagãos, escritores, religiosidade popular… o CEDA passo a passo, XVI Encontro, e a revista, esta, a memória e o futuro dos comboios no Alentejo - de onde um menino partiu num comboio há tantos anos - e um conto de Hugo Santos e o Lopes-Graça e o Zeca recordados, o Prémio Pedro Ferro, edição 2007, poesia e “O Sol à Roda do Monte”, do vencedor de 2006, Francisco Rodrigo, e o Manel Geraldo a abalar e os 50 anos de revista D. Quixote, com Manuel Piçarra e o Alex Pirata apicultor de abelhinhas para a boca do meu amor adoçar, o Suão, vento mas futuro em São Miguel de Machede e a Feira do Monte com o Rui (Veloso) a cantar o primeiro beijo… poderoso, imenso, risca o montado, vermelho vivo/sangue, como um deus desconhecido, um hino de Vida, porque a Vida não tem dono, não é de ninguém, em Bagdad, nas margens do Guadiana; Juromenha, Monsaraz, Mértola, Silves, Marraquexe… a Vida, “tão pouco e tanto”… tão pouco e tudo… Amor… meu Amor….


21 de dez. de 2006

solstício

Sou barco... da taipa e do suão. Em mares do Sul... de Finisterra ao Saara... ao Capricórnio... Sou vento... na subtileza das rosas do deserto ou na oblíqua textura do granito... Corto Maltese?... certamente maltês... na planície ao luar... ao som do rouxinol... soleira da porta... almocreve... tangendo alaúde... na noite escura...

"Quem és tu que assim vens pela noite adiante,
Pisando o luar branco dos caminhos,
Sob o rumor das folhas inspiradas?

A perfeição nasce do eco dos teus passos,
E a tua presença acorda a plenitude
A que as coisas tinham sido destinadas.

A história da noite é um gesto dos teus braços,
O ardor do vento a tua juventude,
E o teu andar é a beleza das estradas!"

Sophia

Sou barco... e neste dia navego, como se fora "o dia inicial inteiro e limpo", ao encontro da luz, solstício, chegada, recomeço, iniciação, reencontro, Vida que ilumina a terra inteira... partilha plena... Amor...

"Iremos juntos sozinhos pela areia
Embalados no dia
Colhendo as algas roxas e os corais
Que na praia deixou a maré cheia.

As palavras que disseres e que eu disser
Serão somente as palavras que há nas coisas
Virás comigo desumanamente
Como vêm as ondas com o vento.

O belo dia liso como um linho
Interminável será sem um defeito
Cheio de imagens e conhecimento."


Sou barco... navego ao teu encontro...
aqui... onde há laranjeiras em flor... espero-te...

aqui onde acontece o cante e o canto também a vós espero amigos... aqui onde as palavras são possíveis... e a poesia é necessária como a textura da cal, convido-vos a partilhar o sonho...

aqui digo um abraço sentido ao amigo cantador do Sul, Chico de seu nome, que nasceu com o Solstício... na estação de Ourique-gare ...

Sou barco... sou mar... sou gaivota... nos versos do capitão!