27 de set. de 2011

"Aldeia Nova" no Pax Julia

"Aldeia Nova"
A partir de um conto de Manuel da Fonseca

Um espectáculo de Paulo Ribeiro, evocativo do centenário do nascimento do poeta, contista, romancista e cronista alentejano e... universal

"A música já estava contida no rumor das sílabas... foi só aguardar um pouco, até que as melodias envolvessem o silêncio e acariciassem as palavras: 'chicotadas de vento' que eclodiram da voz irrepetível de Manuel da Fonseca e que hão-de para sempre ecoar no 'horizonte todo de roda caiado de sol...'. (...) pode ler-se no folheto de apresentação

O espectáculo começou na Praça da República (Beja) com a actuação da Banda Filarmónica de Serpa, como se fossemos marchando ao som da “Marcha Almadanim” percorreu uma daquelas ruas estreitas e antiquíssimas do casco histórico da milenar Beja até ao CineTeatro Pax Julia, onde, junto à entrada continuou a actuação com “Quando cheguei ao barreiro/no vapor que passa o Tejo”


Depois surgiu o Paulo (Ribeiro) que, nas escadarias, apresentou o espectáculo. Entramos e então surgiu em palco o Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa, que interpretou, duma forma avassaladora dois temas, um deles do Manel (da Fonseca) e “Terra sagrada do pão”. Estava dado o mote: a força imensa da Terra, ou melhor, o Alentejo na sua plenitude.

Seis músicos, três cantores, duas bailarinas e um actor, uma dúzia de almas para nos trazerem a emoção da poética do Manel da Fonseca, a sua mística neste espectáculo imensamente emotivo, onde a força telúrica dos Grupo Coral de Serpa teve continuidade com o excelente naipe de músicos, a voz quente e bem timbrada do Paulo, o cantautor da planície, como o ano passado lhe chamámos numa entrevista na Memória Alentejana, e as vozes, forte e segura do Fernando Pardal e melodiosa da Marisela, em coro ou as masculinas a solo. Um cenário cativante com a voz off e a imagem tão real em fundo do Manel, que tantas recordações me trazem de tantas férias passadas na sua companhia única em Santiago do Cacém, e ainda as prestações da Joana Cavaco e da Ana Fabião, na dança ou do António Revez no representação. Uma noite imensa de afectividades ao som da Poesia do Manel, continuada, com o elenco, quase todo reunido na “Galeria do Desassossego”, à conversa, entre dois belos tintos, com o seu responsável, o amigo Jorge Benvida, o líder dos “Virgem Sutta”, o Paulo, o Jorge Moniz, o grande jazzman com raízes em Aljustrel, o Zé Orta e outros, muitos amigos e… já perto do romper da alva, noutro local, a ouvir de novo a voz do Paulo, nos então “Anonimato”, que o disco jokey, seu admirador, fez questão de o/nos presentear entre a música e a dança.



Onze Poemas de Manuel da Fonseca musicadas por Paulo Ribeiro, constituem o fio condutor do espectáculo como "Vagabundo", "Maria campaniça", "Caminhos do Alentejo".

Aqui ficam alguns exemplos com que o Paulo e os seus companheiros de palco nos deliciaram...


As balas

Dá o Outono as uvas e o vinho
Dos olivais o azeite nos é dado
Dá a cama e a mesa o verde pinho
As balas dão o sangue derramado


Dá a chuva o Inverno criador
As sementes da sulcos o arado
No lar a lenha em chama dá calor
As balas dão o sangue derramado


Dá a Primavera o campo colorido
Glória e coroa do mundo renovado
Aos corações dá amor renascido
As balas dão o sangue derramado


Dá o Sol as searas pelo Verão
O fermento ao trigo amassado
No esbraseado forno dá o pão
As balas dão o sangue derramado


Dá cada dia ao homem novo alento
De conquistar o bem que lhe é negado
Dá a conquista um puro sentimento
As balas dão o sangue derramado


Do meditar, concluir, ir e fazer
Dá sobre o mundo o homem atirado
À paz de um mundo novo de viver
As balas dão o sangue derramado


Dá a certeza o querer e o concluir
O que tanto nos nega o ódio armado
Que a vida construir é destruir
Balas que o sangue derramado


Que as balas só dão sangue derramado
Só roubo e fome e sangue derramado
Só ruína e peste e sangue derramado
Só crime e morte e sangue derramado.


Tu e eu meu Amor

Tu e Eu Meu Amor
Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.


Nua a mão que segura
outra mão que lhe é dada
nua a suave ternura
na face apaixonada
nua a estrela mais pura
nos olhos da amada
nua a ânsia insegura
de uma boca beijada.


Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.


Nu o riso e o prazer
como é nua a sentida
lágrima de não ver
na face dolorida
nu o corpo do ser
na hora prometida
meu amor que ao nascer
nus viemos à vida.


Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.


Nua nua a verdade
tão forte no criar
adulta humanidade
nu o querer e o lutar
dia a dia pelo que há-de
os homens libertar
amor que a eternidade
é ser livre e amar.


Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.

Um comentário:

Ezul disse...

Ao ler este texto, apetece-me perguntar se a obra de Manuel da Fonseca será conhecida como merece pelas gerações mais novas e o que se poderá fazer para sua divulgação. Este espectáculo será um bom exemplo do que se pode fazer mas interrogo-me sobre a edição das suas obras, já que, no ano passado, estando uma das suas obras recomendadas nas listas do PNL, se verificou que seria difícil encontrar no mercado os exemplares suficientes para a acividade pretendida.
:)