16 de set. de 2011

Sérgio Godinho - o menino feiticeiro

“Com um brilhozinho nos olhos, o Sérgio Godinho dizia, o Sérgio Godinho retorquia, o Sérgio Godinho andarilho, qual «homem dos sete instrumentos», que um dia esteve «quase morto no deserto», e imaginem, com o (seu) Porto – natal – ali tão perto”

Escrevia assim em 2000  no livro Cantores de Abril Entrevistas  a cantores e outros protagonistas do «Canto de Interveção» Ed. Colibri, Lx, 2000, pp. 199-2007), sobre Sérgio Godinho aquele que é considerado o mais eclético dos «cantautores» portugueses, ou melhor, o “escritor de canções” como ele próprio se define.
Sérgio “andarilho, poeta, cantor, compositor, intérprete, actor, ilustrador, argumentista, realizador, atento observador, enfim, autor, de artes feiticeiro, qual Romance de um dia na estrada em «maré alta», ou não pôr «os pontos nos iis», até porque «é a trabalhar que a gente…» e «de pequenino se torce o destino», contudo, se «a vida é feita de pequenos nadas», desde «o primeiro dia» que «parto sem dor», entoando a «balada da Rita» do Kilas, tendo sempre «cuidado – lá em baixo – com as imitações», porque «eu preciso de um emprego», mas «mudemos de assunto sim?». E, se quiserem, «espalhem a notícia, caramba», que «o rei vai nú», «antes o poço da morte» e «não te deixes assim vestir», são Coincidências de «o fákir» pelo Canto da boca, e olha, «aguenta aí, as armas do amor», tu que és Escritor de canções e se todos os dias os «dias úteis» são, então por que não, lá de tempos a tempos, fazer «ser ou não ser» um Domingo no mundo?”. (Idem, Ibidem)

"Sérgio Godinho, o menino feiticeiro" , como intitulei a capítulo do referido livro sobre o SG, e retomado na mais recente tese de doutoramento policopiado Fundamentos Históricos da Poesia Luso-Árabe (no século de Almutâmide) no Nova Música Portuguesa. O Amor e o Vinho" (pp. 358-402)
num capítulo bem mais vasto (45 pp.) acabadinho de fazer 66 anos, como referiu publicamente há poucos dias numa entrevista numa estação de rádio e quando assinala 40 anos de canções e de edições discográficas, pois o seu primeiro disco , o EP, Romance de um dia na estrada - Guilda da Música, saiu no Outono de 1971 (temas depoius incluídos no 1º LP Os Sobreviventes, 1972), numa célebre apresentação no Cinema Roma, em Lisboa, muito mediática para a época, onde foi igualmente apresentado o LP de José Mário Branco Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, estando os respectivos autores ausentes porque proibidos de entrar no país pela ditadura e exilados em Paris. Mas esse Outono, como é do conhecimento dos amantes da música portuguesa, foi marcado irreversivelmente, não apenas com a publicação destes dois excelentes trabalhos, assim como também os excelentes Gente de aqui e de agora, de Adriano Correia de Oliveira (com direcção musical e orquestração de José Niza), e Cantigas do Maio, de José Afonso (produzido por José Mário Branco), considerado um dos melhores, senão o melhor disco da música portuguesa de todos os tempos - um disco genial entre outros três muito. muito bons. Este Outono de há 40 anos, marca, quanto a mim o início de uma nova etapa na música portuguesa: o início da Nova Música Portuguesa, como defendo na referida tese.
  Quarenta anos depois, 33 trabalhos editados (17 LPs, 5 singles e EPs, 10 CDs
 e um DVD) é o Sérgio igual a si próprio que vamos (re)encontar neste seu 10º CD Mútuo Consentimento, este com participações especiais, entre outros de Manuela Aevedo, Bernardo Sassetti, Noiserv ou Roda do Choro de Lisboa...
Muito, tanto se pode, se podia dizer do Sérgio, que em 1965 se exilou porque não queria fazer a guerra colonial: Géneve, Paris e o grupo de vanguarda Living Theatre - onde fez parte do elenco do musical "Hair", Brasil e 1ª prisão e meio mundo viajado, Quebéque,Paris de novo, 25 de Abril e o regresso, música, teatro, cinema, histórias para crianças, poesia e... a escrita e canto e a composição sempre de mãos dadas, "Sérgio, o Homem dos sete instrumentos", em cada obra renovado, o Sérgio é, muito provavelmente o mais sério continuador e descendente do Zeca Afonso, de quem ele diz, com o seu ar de menino (já sexagenário ) "é o meu herói".
A acompanhar o genial escritor de "canções de canções, 'a banda' de Sérgio Godinho, nos últimos 10 anos,  os músicos Nuno Rafael: direcção musical, guitarras, coros; Miguel Fevereiro: guitarras, percussão, coros; Nuno Espírito Santo: baixo, coros; João Cardoso: piano, teclados, coros; Sara Côrte-Real: coros, teclados, percussão; Sérgio Nascimento: bateria, percussões; João Cabrita: sopros, coros, percussões. São “O Assessores” – como Sérgio Godinho designa os músicos que trabalham com ele:


“É engraçado, porque etimologicamente a palavra assessor significa ‘estar sentado ao lado de’, e é precisamente isso o que eu sinto em relação aos meus companheiros dos discos e palcos.

Na passada 2ª feira, na FNAC do Chiado foi apresentado este mais recente trabalho - ao chegar, com o Francisco Naia a primeira pessoa que vi  e falei foi o Luís Cília , um dos quatro precursores do Canto de Intervenção com o Zeca Afonso, o Adriano e o Manuel Alegre - , com um prorgrama de rádio em directo, com António Macedo e outro radialista (Antenas 2 e 3) onde se falou muito e o Sérgio cantou pouco, só dois temas, mas mesmo assim valeu a pena:
 Aqui ficam dois temas recentes e três mais antigos mas... sempre actuais:

http://www.youtube.com/watch?v=a-CSlGDQ9H8&feature=related

http://www.youtube.com/watch?v=FHyh578eyao&feature=related

Feiticeira

(Sérgio Godinho- letra e música)
(Pano-cru)

Ai, ai, nos teus olhos
as pestanas são aos molhos, aos molhos
ai, ai nos teus braços as ternuras são aos maços, aos maços

ai, ai, nos teus olhos as pestanas
são aos molhos, aos molhos
e eu não as vejo faz semanas
nos teus olhos, teus olhos,
ai, ai, nos teus braços as ternuras
são aos maços, aos maços
faz já tempo que não me seguras
nos teus braços, teus braços


Ai, ai, ai feiticeira
ai, ai, ai feiticeira
cheira tão bem, sabe bem o teu feitiço
e de que maneira, e de que maneira
manda aí do teu feitiço
Isso!


Ai, ai na tua cama
é que o meu sonho se derrama, derrama
ai, ai, na tua rua
é que o meu passo desagua, desagua
ai na tua cama é que o meu sonho
se derrama, derrama
faz já muito dias que não o ponho
na tua cama, tua cama
ai, ai, na tua rua é que o meu passo
desagua, desagua
faz já meses que não o faço
passar na tua rua, tua rua


Ai, ai, ai feiticeira
ai, ai, feiticeira
cheira tão bem, sabe tão bem o teu feitiço
e de que maneira, e de que maneira
manda aí do teu feitiço
Isso!


Ai, ai, nos teus lábios
Os provérbios são mais sábios, mais sábios
E quem quer saber da vida bebe-os
Dos teus lábios, teus lábios
Ai, ai nas tuas veias
O amor anda às mãos cheias, mãos cheias
Ai, ai, na tua rua
É que o meu passo desagua, desagua
Ai, ai, na tua cama
é que o meu sonho se derrama, derrama
ai, ai nos teus braços
as ternuras são aos maços, aos maços
ai, ai nos teus olhos,
as pestanas são aos molhos, aos molhos

Espalhem a notícia
(Sérgio Godinho - letra e música)
(Canto da boca)

Espalhem a notícia
do mistério da delícia
desse ventre
Espalhem a notícia do que é quente
e se parece
com o que é firme e com o que é vago
esse ventre que eu afago
que eu bebia de um só trago
se pudesse


Divulguem o encanto
o ventre de que canto
que hoje toco
a pele onde à tardinha desemboco
tão cansado
esse ventre vagabundo
que foi rente e foi fecundo
que eu bebia até ao fundo
saciado


Eu fui ao fim do mundo
eu vou ao fundo de mim
vou ao fundo do mar
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher


A terra tremeu ontem
não mais do que anteontem
pressenti-o
O ventre de que falo como um rio
transbordou
e o tremor que anunciava
era fogo e era lava
era a terra que abalava
no que sou


Depois de entre os escombros
ergueram-se dois ombros
num murmúrio
e o sol, como é costume, foi um augúrio
de bonança
sãos e salvos, felizmente
e como o riso vem ao ventre
assim veio de repente
uma criança


Eu fui ao fim do mundo
eu vou ao fundo de mim
vou ao fundo do mar
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher


Falei-vos desse ventre
quem quiser que acrescente
da sua lavra
que a bom entendedor meia palavra
basta, é só


adivinhar o que há mais
os segredos dos locais
que no fundo são iguais
em todos nós


Eu fui ao fim do mundo
eu vou ao fundo do mim
vou ao fundo do mar
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher


A noite passada
(Sérgio Godinho - letra e música)
Escritor de canções


A noite passada acordei com o teu beijo
descias o Douro e eu fui esperar-te ao Tejo
vinhas numa barca que não vi passar
corri pela margem até à beira do mar
até que te vi num castelo de areia

cantavas "sou gaivota e fui sereia"

ri-me de ti "então porque não voas?"
e então tu olhaste
depois sorriste
abriste a janela e voaste


A noite passada fui passear no mar
a viola irmã cuidou de me arrastar
chegado ao mar alto abriu-se em dois o mundo
olhei para baixo dormias lá no fundo

faltou-me o pé senti que me afundava

por entre as algas teu cabelo boiava

a lua cheia escureceu nas águas
e então falámos
e então dissemos
aqui vivemos muitos anos


A noite passada um paredão ruiu
pela fresta aberta o meu peito fugiu
estavas do outro lado a tricotar janelas
vias-me em segredo ao debruçar-te nelas
cheguei-me a ti disse baixinho "olá",
toquei-te no ombro e a marca ficou lá
o sol inteiro caiu entre os montes
e então olhaste
depois sorriste
disseste "ainda bem que voltaste"

3 comentários:

Guaraciaba Perides disse...

Belíssima postagem com tão belas letras! Faz muito bem ao coração,
Um abraço

Nayara Borato disse...

Olá, desculpe invadir seu espaço assim sem avisar. Meu nome é Nayara e cheguei até vc através do Blog A dança das Palavras. Bom, tanta ousadia minha é para convidar vc pra seguir um blog do meu amigo Fabrício, que eu acho super interessante, a Narroterapia. Sabe como é, né? Quem escreve precisa de outro alguém do outro lado. Além disso, sinceramente gostei do seu comentário e do comentário de outras pessoas. A Narroterapia está se aprimorando, e com os comentários sinceros podemos nos nortear melhor. Divulgar não é tb nenhuma heresia, haja vista que no meio literário isso faz diferença na distribuição de um livro. Muitos autores divulgam seu trabalho até na televisão. Escrever é possível, divulgar é preciso! (rs) Dei uma linda no seu texto, vou continuar passando por aqui...rs





Narroterapia:

Uma terapia pra quem gosta de escrever. Assim é a narroterapia. São narrativas de fatos e sentimentos. Palavras sem nome, tímidas, nunca saíram de dentro, sempre morreram na garganta. Palavras com almas de puta que pelo menos enrubescem como as prostitutas de Doistoéviski, certamente um alívio para o pensamento, o mais arisco dos animais.



Espero que vc aceite meu convite e siga meu blog, será um prazer ver seu rosto ali.

http://narroterapia.blogspot.com/

Ezul disse...

Feiticeiro, mágico ou escritor de canções, sendo esta última expressão a que prefiro, por me falar da profundidade de uma obra, de todo o significado, intervenção e beleza de que se reveste.
:)