A arte de José Afonso é um jorro de água clara, puríssima, portuguesa sem mácula. Realmente é a «pureza» a nota maior desta arte. Pureza de voz, pureza no poema, pureza na música… Trova antiga purificada, folclore limpo de excrescências, balada de combate em que a justiça vai de bandeira. E o ouvinte fica tonificado, «limpo», cheio de graça, com mais vigar para a luta. No chiqueiro velho e saudosista, insignificante e feio da música ligeira do nosso país, José Afonso surgiu como um renovador: de riso claro e leal, com punho duro de diamante, terno e gentil sem amaneiramentos. Limpou crostas, desatou amarras, descobriu ramos verdes e ocultos, abriu janelas na parede bolorenta do fatalismo lusíada. E como esta arte pura e viril habitava já, nebulosamente, nos anseios da juventude que tanto pechisbeque musical mórbido e paupérrimo trazia nauseada, José Afonso conseguiu rapidamente uma enorme audiência: Ele é hoje o mais autêntico trovador do povo português, nesta hora que todos vivemos. Ninguém melhor que ele transmite os seus desesperos e raivas, as suas aspirações de amor, de paz, de justiça de verdade. Por isso, todos o amam. E o amor do povo, dos jovens, de todos aqueles que ainda não estão definitivamente contaminados, esclerosados, é, tenho a certeza, a recompensa e a glória de José Afonso. Nem tudo está podre no reino da Dinamarca.
Bernardo Santareno
No dia 23 passaram 24 anos sobre o desaparecimento físico do génio maior da Música Popular Portuguesa e um dos mais importantes da World Musica. Prefiro as datas iniciais, o nascimento, o início da Vida... mas ainda assim partilho este texto do dramaturgo Bernardo Santareno, que não obstante ter várias referências a um tempo outro, antes da Revolução de Abril, e ser até optimista relativamente até à divulgação da genial obra do Zeca junto do povo - pois o Zeca, embora o reconhecimento geral, continua a ser uma figura etiquetada e mal amada por algum do conservadorismo que impera nas mentes obtusas, resquídeos do salazarismo que não desapareceram de fez - mas dizia, é um texto actualissimo quando nos fala da imensa e grandeza da obra musical e poética do Zeca.
O Zeca nunca se escusou a estar nos combates em defesa da dignidade colectiva por causa da sua liberdade individual, mas também nunca abdicou da sua "Liberdade Livre", como referi a sua postura filosófica e existencial, em 2007 na Casa da Música - Porto, e de ser o "seu próprio comité central".
Por isso é para mim uma referência fundamental, para além do génio criador, uma filosofia de Vida feita de Liberdade imensa, tolerância e intransigência nos defesa dos valores humanistas.
Partilho um dos mais belos temas interpretados pelo Zeca, que escreveu e musicou magistralmente a partir de refrão popular, agora que a Primavera se começa a fazer anunciar...
Cantigas do Maio
Eu fui ver a minha amada
Lá p'rós baixos dum jardim
Dei-lhe uma rosa encarnada
Para se lembrar de mim
Eu fui ver o meu benzinho
Lá p'rós lados dum passal
Dei-lhe o meu lenço de linho
Que é do mais fino bragal
Minha mãe quando eu morrer
Ai chore por quem muito amargou
Para então dizer ao mundo
Ai Deus mo deu Ai Deus mo levou
Eu fui ver uma donzela
Numa barquinha a dormir
Dei-lhe uma colcha de seda
Para nela se cobrir
Eu fui ver uma solteira
Numa salinha a fiar
Dei-lhe uma rosa vermelha
Para de mim se encantar
Minha mãe quando eu morrer
Ai chore por quem muito amargou
Para então dizer ao mundo
Ai Deus mo deu Ai Deus mo levou
Eu fui ver a minha amada
Lá nos campos eu fui ver
Dei-lhe uma rosa encarnada
Para de mim se prender
Verdes prados, verdes campos
Onde está minha paixão
As andorinhas não param
Umas voltam outras não
Minha mãe quando eu morrer
Ai chore por quem muito amargou
Para então dizer ao mundo
Ai Deus mo deu Ai Deus mo levou
(Refrão popular/José Afonso)
2 comentários:
Aprendendo SEMPRE com este blog!
Um beijo.
Zeca que eu conheci pessoalmente
nos tempos de luta...se ele fosse
vivo hoje sofreria muito mais.
Um beijinho
Irene
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