2 de fev. de 2011

Sophia...

Uma Vida de Poeta


Não sei se sobrevivo… mas sei que vivo intensamente o azul, vivo com forças renovadas na voz e nas palavras de Sophia… apetecia-me falar-vos dos cânticos do Coro Bizantino «Tropos»de Atenas e da música de Al Kindi Ensemble e Coro Munshiddin de Aleppo (Grande Mesquita de Omeyyad) e do sereno rodopio dos derviches -  o momento sublime de êxtase que vivi ontem na Gulbenkian - no espectáculo de Homenagem cristã e muçulmana a Maria, a convite do meu Amigo Eduardo Ramos. Nem mil livros nem levariam a sentir tão intensamente o sufismo, a perceber a causa que Ibne Quasî, abraçou - o místico guerrilheiro que tem estátua entre a mesquita e o castelo de Mértola, entre a meditação profunda e inimaginável e a revolução, também ela libertadora, quando vejo as imagens na televisão – que raramente vejo, em casa não uso – sobre a revolução nas ruas do Cairo … e percebo-o melhor nas palavras, pelas palavras de Sophia, da sede de justiça na Poesia… nas palavras que comecei a ler agonizante de tédio num hospital… e terminei há momentos num café, onde tomava a primeira refeição do dia , ou da noite, enquanto as imagens do Cairo e de Alexandria passavam…


Sei apenas que vivo intensamente perante esta bênção que me foi dada, e abro as asas feridas ao mundo, ao intenso, ao imenso fulgor da Vida, a plenitude urgente, necessária, imprescíndivel que sinto que tenho em mim e quero partilhar e receber com quem comigo quiser e souber voar até ao infinito… como as palavras sublimes de Sophia, que partilho:

A coisa mais antiga de que me lembro é de um quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima de uma mesa, uma maça enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maça erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria .
Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda de uma coisa, um círculo onde um pássaro do real fica preso. (…) E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é desde sempre uma coordenada fundamental de toda a obra poética.
(Palavras ditas quando recebeu o Grande Prémio de Poesia da SPE por Livro Sexto, em 1964)

A bordo do Atreus vi aparecer a ilha de Leuks. Depois passou um bando de golfinhos: um corria quasi à tona da água rente ao navio. Às 9 horas da manhã já estava no deck: como sempre que estou a bordo sinto-me elástico e com uma euforia especial. Brilho do sol sobre a água, mas liso. Navegávamos sem um balanço.Mar azul, céu azul, ilhas azuis enevoadas. Ítaca aparece e vai-se desenhando: verde até ao mar, despovoada quasi sempre.
Piso às 4 e meia a terra grega. Enseada maravilhosa à saída de Patras. Vamos rente ao mar entre oliveiras e ciprestes e montanha azuladas. Calor bom, ar perfumado. As montanhas ligam a terra ao Olimpo.

                     Sophia com 25 anos - foto de estúdio Comecei a escrever histórias para creanças quando os meus filhos tiveram sarampo. Era no inverno e o médico tinha dito que eles deviam ficar na cama, bem cobertos, bem agasalhados. Para isso era preciso entretê-los o dia inteiro. Primeiro contei todas as histórias que sabia. Depois mandei comprar alguns livros que tentei ler em voz alta. Mas não suportei a pieguice da linguagem nem a sentimentalidade da “mensagem”: uma creança é uma creança não é um pateta. Atirei os livros fora e resolvi inventar. Procurei a memória daquilo que tinha fascinado a minha própria infância. Lembrei-me de que – quando eu tinha cerca de 5 ou 6 anos e vivia numa casa branca na duna – a minha mãe me tinha contado que nos rochedos daquela praia morava uma menina muito pequenina. Como nesse tempo para mim a felicidade máxima era tomar banho entre os rochedos essa menina marinha tornou-se o centro das minhas imaginações. E a partir desse antigo mundo real e imaginário comecei a contar a história a que mais tarde chamei “A menina do mar”
     Os meus filhos ajudaram.




Perguntavam:
     - De que cor era o vestido da menina?
     - O que é que fazia ao peixe?
     Aliás nas minhas histórias para creanças quase tudo é escrito a partir dos lugares da minha infância.
(Texto inédito, sem data)

Comecei a escrever uma noite de Primavera. Uma incrível noite de vento leste e Junho. Nela o fervor do universo transbordava e eu não podia reter, cercar, conter – nem me podia desfazer em noite, fundir-me na noite.
No gume da perfeição, no imenso halo da líquida luz azul e transparente, no rouco da treva, na quase palavra de murmúrio da brisa entre as folhas, no íman da lua, no insondável perfuma das rosas havia algo de pungente, algo de alarme.
Como sempre a noite de vento leste misturava extasi e pânico.
Era a pré-história da minha juventude –o que escrevi era balbuciante, imerso em kaos – quis regressar à tona de mim própria – mas só pude regressar à tona das palavras. E toquei a larga linha de água.
(Texto inédito dos anos 80)

In JL, 26 de Janeiro a 8 de Fevereiro de 2011
A propósito da Exposição Uma Vida de Poeta, inaugurada na Biblioteca Nacional, a partir do espólio de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) e colóquio internacional decorrido na Fundação Gulbenkian a 27 e 28 de Janeiro

Um comentário:

Ezul disse...

Vi bem?!!! Yasmin Levy veio a Portugal? Não me conformo por não ter sabido,por não ter assistido!
:(