22 de abr. de 2011

AS VOZES DA NATUREZA ou Urbano, o Homem generoso e sábio apaixonado pelo irresístivel universo feminino...



Depois de uma ausência que se prolongou, regresso com 

A transparência do orvalho gemia no meu esquecimento de mim, tornava-me todo eu atenção ao saltitar das rãs amanhecendo na clara alegria do tanque grande.


O meu sangue cantava na ondulação das folhas da figueira. Agora estou nascendo a toda a volta de mim no riso verde das searas, na brisa que se quebra contra a rude atalaia, sobranceira ao rio com o seu açude e o seu moinho árabe, e sacode as franjas do silêncio nos altos choupos onde as cegonhas fazem ninho, nos pegos de eu nadar quando a Páscoa aquece as águas.


E ouço os meus segredos mais secretos no gemer das oliveiras e chaparros, meus tão íntimos parentes. E a ternura das sombras estende-se, para lá do rio e das suas narcejas, pelos ermos da Deveza de São Brás, até ao Guadiana.


A frescura do silêncio cai um instante sobre as lavradas e as folhas onde o meu ser se recria.


Comecei muito cedo a ouvi-las, as vozes da natureza.


Conheço-as desde que tenho memória de mim. Depois houve a doença, que me impedia de sair do «monte» e, quando melhorei um pouco, conseguiram que eu fizesse a primeira comunhão, mas nunca acreditei naquele inferno que me pintavam e continuei a fugir de casa e embriagar-me de luz, a correr ao lado dos rebanhos de vacas e ovelhas nesse meu regresso à natureza, de que me sentia pertença.


Foram o azul profundo das noites estreladas e o que o vento e as nuvens diziam aos meus ouvidos que fizeram nascer em mim palavras que depois naturalmente começaram a escrever-se.


Da pobreza e do sofrimento dos trabalhadores que me rodeavam só mais tarde me apercebi e senti a necessidade de lhes dar voz por entre as vozes da natureza e pela estrela da vida fui andando com eles no pensamento e nos actos.


Nas ruas de Lisboa e de outras cidades onde não entra o sol de Inverno, tapado por altos edifícios, experimentei a saudade profunda dos descampados alentejanos, das vozes do rio e da tristeza dos homens, dos seus cantares. Levei-os comigo para França e para o mundo, para as aulas que dei e até para as prisões onde os meus ossos enregelaram.


O livro é palavra de combate, mesmo quando não parece sê-lo, se apenas nos mostra os homens nas suas fainas e penas.


Assim continuarei sempre a escutar as vozes da natureza e a dar delas notícia.


                                       Urbano, foto recente


Este é, certamente o mais autobiográfico de todos os contos nesta “luminosa viagem pelos corredores secretos da vida” deste belo Os Terraços de Junho contos e sonhos acabado de sair. Como refere na contracapa “Quase todos estes contos se caracterizam pelo insólito, pelo mágico, pelo surpreendente. Pairam entre o real e o irreal numa fascinante contradança de amor, aventura e desespero. E, contudo, o social nunca é esquecido. Mas é na segunda parte, um conjunto de textos intitulado «Angústia com licor de rosas», que o onírico prevalece e a intensa pulsão poética da escrita de Urbano Tavares Rodrigues ganha contornos de invulgar sedução.


Jamais o autor de O Eterno Efémero foi tão longe na devassa do ser humano e dos seus alçapões.(…)”


Ou ainda como se lê na badana “Urbano Tavares Rodrigues não é apenas o grande escritor do Alentejo, das suas gentes e das suas paisagens, é também o romancista e o contista de Lisboa e de outras atmosferas cosmopolitas que, como jornalista e professor universitário, bem conheceu, viajando por todo o mundo.


Catedrático jubilado na Faculdade de Letras de Lisboa, membro da Academia de Ciências (Secção de Letras), tem uma vasta obra literária e ensaística traduzida em vários idiomas, do francês e do espanhol ao russo, ao grego, ao romeno, ao búlgaro, ao checo, ao alemão e ao inglês, ao catalão, ao ucraniano, ao croata, ao japonês, ao italiano, ao holandês, ao chinês. Obteve diversos prémios, entre eles o da Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores, o Prémio Fernando Namora e o Ricardo Malheiros da Academia de Ciências.


De entre os seus maiores êxitos de crítica e de público, lembramos A Noite Roxa, Bastardos do Sol, Os Insubmissos, Imitação da Felicidade, Fuga Imóvel, Violeta e a Noite, O Supremo Interdito, Nunca Diremos Quem Sois, A Estação Dourada, O Etreno Efémero, Ao Contrário das Ondas, Os Cadernos Secretos do Prior do Crato, A Última Colina e Assim se Esvai a Vida – três livros num só. Urbano Tavares Rodrigues, que foi afastado do ensino universitário durante as ditaduras de Salazar e Caetano, participou activamente na resistência e foi preso e encarcerado por várias vezes nos anos sessenta.”


Urbano que é autor de um total de 89 títulos – 45 livros de Ficção, 28 de Ensaio e Crítica, 15 de Viagens e Crónica e um de Poesia é também um Homem generoso, fraterno e solidário, como já me deu provas participando em projectos colectivas para os quais o convidei – como a apresentação pública do Centro de Estudos Documentos do Alentejo – CEDA (de que é sócio fundador), na Casa do Alentejo, Lisboa, Outubro de 2000, no júri do "Prémio Literário Pedro Ferro", a que presidiu – entre 2004 e 2006, ou escrevendo prefácios, textos, organizando, apresentando – como foi o caso dos livros de Poesia de José da Fonte Santa – no âmbito da homenagem a este Poeta realizada em 1999 – ou a Maria Lascas, ou mais recentemente na redacção do prefácio para Nova Antologia de Poetas Alentejanos.


Numa das visitas que lhe fiz, quando ele estava a escrever Os Cadernos Secretos do Prior do Crato - a propósito de D. António, Pior do Crato, que teve 10 filhos de 10 mães, que vivia dividido, dilacerado, entre a entrega a uma fé verdadeira e pura e a entrega plena à sensualidade feminina, afinal a mais bela razão de ser do homem. Foi num dia em que Urbano não tinha muitos compromissos, passamos uma tarde a falar e, a páginas tantas, estávamos a discorrer sobre os amores passados. Olhando para o fundo da memória, concordávamos que de nada nos arrependíamos, excepto num aspecto… ser melhor. Foi tão forte a partilha que, por momentos olvideu que 39 anos separam mestre e o discípulo…


Recentemente visitei-o e fiquei muito incomodado da forma como Urbano me relatou pormenorizadamente a sua própria morte, que segundo ele estava para breve, receei que para muito breve… percebi a sua fragilidade física e fiquei emocionado quando me ofereceu o seu primeiro livro de poemas.


Mas, na semana seguinte, no lançamento deste fulgurante livro de contos - de que transcrevi o que mais me impressionou -, neste livro onde a morte está presente, mas a para com o desejo, a sedução, a sensualidade… e senti uma breve centelha de vitalidade neste homem generoso, de enorme sensibilidade e delicadeza


Depois de confraternizar com o Hugo Santos e o José Luís Peixoto, preparava-me para me despedir do Urbano, quando surgiu de rompante um menino  com cinco anos, de ar franzino mas firme e decidido, tão parecido com as fotos de infância que se conhece do Urbano e lhe disse:


- Ó Urbano, despacha-te, para irmos embora!...


Urbano, agora com 87 anos, sagitário de Dezembro, respondeu ao apelo do seu filho e levantou-se de imediato como se fossem dois meninos que se preparavam para ir sorver com sofreguidão a imensidão do “riso verde das searas, ouvir as vozes da natureza nos descampados alentejanos”.


2 comentários:

Lúcia Laborda disse...

Oie meu amigo, você anda sumido... Adorei ler As vozes da natureza! Não conhecia o escritor, mas adorei seu estilo!
Boa semana! Beijos

Erica disse...

Fina a poesia do escritor. Também eu não o conhecia. Tratarei de sanar a carência. Grata por seguir meu blog. São apenas tateios poéticos.
Forte abraço