29 de out. de 2010

Anouar Brahem e o Jardim Adormecido

Anouar Brahemnasceu na Medina de Tunis (Tunísia) e é considerado o especialista de Ud (instrumento árabe tradicional de cordas) mais criativo e inovador do seu país. Discípulo do grande mestre Ali Sriti na arte do Maqam, o sistema de modos da música erudita árabe, e do Taqsim, a arte da improvisação, Brahem atribuiu-se a missão de restaurar o Ud enquanto instrumento solista, emblemático da música árabe. Grande conhecedor da música tradicional árabe é também um músico imbuído da contemporaneidade, pois rompeu com a tradição ao integrar nas suas composições elementos de Jazz e de outras tradições, orientais e mediterrânicas, tendo-se lançado definitivamente na exploração das músicas do mundo, como se pode ler no folheto de apresentação do recital.


Anouar Brahem Quartet deliciou-nos, no passado dia 25 no Grande Auditório da Fundação Gulnbenkian com um excelente momento instrumental marcado por uma extrema subtileza e criatividade. Composto, para além de Anouar, pelo músico libanês Khaled Yassine na percussão (Darbouka e Bendir), o nórdico Björn Meyer no baixo eléctrico e o alemão Klaus Gesing no clarinete baixo. Foram momentos empolgantes para os amantes das sonoridades mediterrânicas e para os amantes do Jazz – para nós foi-o duplamente como há muito não nos acontecia.


Momentos partilhados numa imensa plateia esgotada com o nosso Amigo, músico, compositor e intérprete Eduardo Ramos, que se apaixonou pelo alaúde, depois de um dia, há muito ter assistido a um recital de Anouar Brahem.


“Tenho necessidade dos dois mundos”, reconhece Anouar, provavelmente o mesmo que sentimos quando passamos horas bebendo o delicioso chá marroquino de menta com hortelã, fumando o aromático tabaco noire local, sentados na esplanada do “Grand Café Paris” em Tânger, cidade dos dois mundos.

                                                    Anouar Brahem na sessão de autógrafos

Temas como “The lover of Beirute”, “Dance with waves”, “Stopover at Djibouti”, “The astounding eyes of Rita” , “Galilee mon amour”, “Sur le fleuve”, “Waking state”, “For no apparent reason” e “Al Birwa” com o título do programa precisamente “The astounding eyes of Rita” em referência à obra poética de mahmoud Darwish (1941-2008), considerado o Poeta nacional da Palestina - autor de uma grande obra poética e figura muito influente na esfera cultural árabe.

 
O título que dá o nome ao livro traduzido para portuguesa é precisamente este poema que transcrevo e dedico aos (às) que perseguem ideais e valores e não abdicam do Amor e da dignidade mesmo em vez das “sensatas materialidades” e também a quem vive, completamente solitário, a solidão existente no seu próprio coração…





O JARDIM ADORMECIDO


Quando o sono a tomou nos braços, retirei a mão,
contornei os seus sonhos,
vi o mel desaparecer atrás das suas pálpebras,
orei por duas pernas miraculosas.
Inclinei-me sobre as palpitações do seu coração,
vi trigo sobre mármore e sono.
uma gota do meu sangue chorou,
estremeci…
Um jardim dorme no meu leito.


Dirigi-me para a porta
sem olhar para a minha alma sempre adormecida.
Ouvi o rumor antigo dos seus passos e o sino do seu coração.
Dirigi-me para a porta.
- A chave está na sua bolsa
e ela dorme como um anjo depois do amor –
Noite chuvosa na rua e nenhum ruído,
a não ser as palpitações do seu coração e a chuva.
Dirigi-me para a porta.
Esta abre-se.
Saio.
Ela fecha-se.
A minha sombra desliza atrás de mim.
Porque digo adeus?
Eu sou, a partir de agora, estranho às lembranças e à

                                                                           minha casa.
Desci as escadas.
Nenhum ruído,
a não ser as palpitações do seu coração, a chuva
e os meus passos sobre os degraus que vão
das duas mãos a um desejo de viajar.


Cheguei à árvore.
Aqui, ela abraçara-me.
Aqui, feriram-me raios de prata e de cravos.
Aqui, começava o meu universo.
Aqui, ele terminava.
Parei durante alguns instantes feitos de lírio e de inverno,
caminhei,
hesitei,
depois avancei.
Levava os meus passos e a minha memória salgada.
Caminhei na minha companhia.

Nem adeus nem árvore.
Os desejos adormeceram atrás das janelas,
as histórias de amor e as traições
adormeceram atrás das janelas,
e os agentes de segurança também.
Rita dorme… dorme e desperta os seus sonhos.
De manhã terá o seu beijo
e as suas visitas,
em seguida preparará o meu café árabe
e o seu café com leite.
Interrogar-me-á, pela milésima vez, sobre o nosso amor.
Responder-lhe-ei:
Eu sou o mártir das mãos que
todas as manhãs me preparam o café.
Rita dorme… Dorme e desperta os seus sonhos
- Vamos casar-nos?
- Sim.
- Quando?
- Quando o lilás crescer nos bonés dos soldados.
Ultrapassei as ruelas, o edifício dos correios, as
                                                                    esplanadas dos
cafés, as boites nocturnas e as suas bilheteiras.
Amo-te, Rita. Amo-te. Dorme.
Daqui a treze invernos, perguntarei,
perguntarei:
- Ainda dormes?
- Já acordaste?
Rita! Rita, amo-te.
Amo-te…

Mahmud Darwich, O Jardim Adormecido e outros poemas, 
(Trad. de Albano Martins), Caampo das Letras, Porto, 2001


21 de out. de 2010

(ainda) a República , o aniversário do CEDA e...a Poesia, sempre!


                                                          A República ontem e hoje

O ciclo de Conferências "O Alentejo e a 1ª República" foi um co-organização das três entidades – por proposta do Centro de Estudos Documentais do Alentejo-CEDA -, CEDA, Instituto Politécnico e Município de Beja, teve patrocínio da CNCCR, parcerias com os Municípios de Aljustrel, Mértola, Governos Civis de Beja e Setúbal, Fundação Mário Soares, apoio da Delta Cafés, hotelaria de Beja, da comunicação social do Baixo Alentejo e ainda dos Municípios de Setúbal, Lisboa e Casa do Alentejo. Muitos meses de trabalho, de muita gente, a Comissão Organizadora composta por: José Filipe Murteira (CMB), José Orta e Miguel Bento (IPB), Manuel Baiôa e Jorge Feio (CEDA), e nós que coordenámos e Francisco Constantino Pinto e Domingos Montemor (Direcção do CEDA),dias e muitas horas de intervenções, debate reflexão levam-nos a deixar algumas reflexões conclusivas:
não estivemos a idolatrar a 1ª República, antes a ouvir alguns dos maiores especialistas na matéria, a debater vários pontos de vista. Todavia, assumimos que participando activamente nas comemorações do Centenário da República, comemorámos a República precursora da modernidade, pelo que trouxe de inovador seja na igualdade dos cidadãos perante a lei, a instauração do laicismo, da escola pública, de uma nova mentalidade perante o obscurantismo ultramontano e conservador - onde após 16 anos os grandes interesses económicos foram buscar o apoio para decapitar de uma penada a frágil mas inovadora e modernizante República. Esta 'caíu' não apenas pela instabilidade, mas sobretudo porque o grande poder económico a derrubou – e esta leitura por vezes não passa das entrelinhas mas deve chegar , preto no branco, aos cidadãos face à atitude deturpadora de alguma 'inteligentzia' da nossa praça que vêem na 1ª República a origem de todos os nossos males, um sistema pior que a Monarquia Liberal e quiçá, que o próprio Salazarismo. Todavia, em História temos que atender ao contexto e tempo histórico: afinal alguém se lembra de denegrir a figura de D. João II, por ter feito justiça pelas próprias mãos?.é  que a 1ª República de facto falhou nas questões sociais, falhou no sufrágio universal, não foi um regime plenamente democrático, mas a razão da sua queda radica na reacção dos grandes poderes económicos da época, quando sentiram que a República podia mexer nos seus interesses, quando, nos anos 20, alguns breves governos da facção de esquerda do Partido Democrático, de Afonso Costa, ensaiou tímidas medidas financeiras de tributação das fortunas, inclusive com ministros socialistas – do antigo Partido Socialista de José Fontana - e então o poder económico resolveu tirar de vez o 'tapete' à República, pois percebeu que não era suficiente a luta política através do partido dos patrões – União dos Interesses Económicos – mas era necessário um Estado centralizado num homem forte, que não beliscasse os seus interesses, antes pelo contrário que os acautelasse e defendesse fortemente, que pusesse na ordem a nova e combativa classe social em ascensão, o operariado influenciado pela Revolução Soviética e pelo pensamento anarco-sindicalista. E surgiu essa figura maquiavélica e “mesquinha de Santa Comba Dão que prejudicou e continua a prejudicar Portugal” (Vasco Pulido Valente) pelo espírito profundamente conservador e anti-liberal, provinciano e doentio em que foram moldadas gerações e gerações. Essa foi a grande herança deixada por Salazar, legado que tem aos poucos deteriorado irremediavelmente (?) a 2ª República. Será que é necessário uma 3ª República para voltarmos ao espírito de 25 de Abril, que resgatou os valores mais nobres da 1ª República e lançou as bases de outros em que a República falhou? Curiosamente os momentos históricos mais marcantes do século XX português tiveram uma ampla participação popular e por isso se fala nas Revoluções do 5 de Outubro e do 25 de Abril. Mas se as questões sociais não foram resolvidas após 1910, como após 1975, quando as conquistas alcançadas com a Revolução começaram lenta mas progressivamente a esboroar-se, apesar de termos uma das Constituições mais democráticas do mundo!...a grande questão está em que depois de esse breve interregno de poucos anos, são praticamente as mesmas famílias que detêm o grande poder económico: assim era no final do século XIX, assim continuou com a República, foram eles que foram buscar Salazar, como de alguma forma deixaram cair Marcelo Caetano - quando perceberam que o regime já não servia para os seus interesses ficarem seguros; e depois do 'sobressalto' de Abril aí estão eles do novo, hoje os grandes responsáveis, a nível nacional, pela crise - e com os seus 'colegas' estrangeiros, da crise a nível mundial. E os governos tratam-nos nas "palminhas", pagam-lhes com o dinheiro dos nossos impostos as dívidas, as falências, as reformas chorudas de cargos virtuais. Os governos fazem lembrar os tenentes da guarda (GNR), presidentes e governadores do salazarismo - que espizanhavam, maltratavam e quando necessário assassinavam os trabalhadores rurais ao minímo incómodo que ousassem causar aos grandes agrários com o "rei na barriga". Ou será que, neste tempo em que vivemos "um triste tempo de anti-utopia" (António Murteira), tempo propiciodor ao alastramento da peçonha da mediocridade, da sabujice e de uma certa forma autoritarismo encapuçado, que conta com a conivência, por vezes de onde menos se esperaria, será que estamos hoje, como no tempo de João Franco em que a monarquia constuticional estava moribunda e é inevitável a mudança de regime?

                                                         X Aniversário do CEDA

Este ciclo de conferências terminaram no dia 4 na Casa do Alentejo com o a homenagem a Brito Camacho, proferida pelo Luís Bartolomeu Afonso da Palma – pai do Luís Afonso – e o Francisco Colaço, Jorge Nunes (Caixa de Crédito Agrícola) e com a participação dos presidentes, já referidos do Município de Aljustrel e do respectivo Centro Republicano, o presidente do CEDA (Francisco Naia) e o representante do Município de Lisboa ( da Comissão Municipal do Centenário).



Seguidamente depois de uma breve apresentação da Memória Alentejana, como já aconteceu nos outros locais, passamos em destaque algumas realizações que marcaram os 10 anos do CEDA, a saber:



A realização de 20 Encontros, Seminários, Colóquios, alguns internacionais – como foi o caso em 2009 em Évora (participações de investigadores portugueses, espanhóis e marroquinos), realizados em outros tantos concelhos alentejanos, sempre em parceria com os Municípios(Câmaras e Juntas de Freguesia), mas também com a Universidade de Évora ou o IPB (neste caso), assim como os Governos Civis, Regiões de Turismo, Associações de Municípios - que fazem chegar a Revista Memória Alentejana aos 47 Concelhos Alentejanos - e diversas entidades públicas e privadas;

a realização de 6 Passeios Campestres no Concelho de Montemor –o-Novo, em colaboração com o respectivo Município e em parceria com a MontemorMel (5 Passeios);

a edição de 5 títulos na colecção “Memória e Escrita Alentejana (parceria com Edições Colibri), 3 Edições da Prémio Literário Pedro Ferro (patrocínio do Governo Civil de Beja,

a edição regular desde 2001 inclusivé da Revista Memória Alentejana, a única neste área do património e da identidade com esta longevidade a sair a Sul do Tejo, distribuída em todas as bibliotecas e associações culturais do Alentejo (Associações do Municípios e DRCA), livrarias de referência Alentejo e Margem Sul, FCSH/UNL (Instituto de Estudos de Literatura Tradicional – IELT), publicações congéneres no país e Espanha (permutas e parcerias, espaço aberto a investigadores, sejam académicos, autodidactas ou estudantes onde se divulga, comparativamente por edição maior número de livros, periódicos, discos e outros de autores alentejanos ou que interessam ao Alentejo (na mais recente edição foram 23).

Concluindo-se que o CEDA e a Revista Memória Alentejana são espaços de debate, pontos de encontro do saber académico e científico com o conhecimento ancestral do povo alentejano, o encontro entre a tradição e a modernidade,com um espírito de liberdade e de cidadania, plural, democrático, independente, de tolerância em defesa da Identidade, da Memória e dos Patrimónios Cultural e Natural do Alentejo.

Foram então entregues os certificados, como o CEDA distinguiu um conjunto de individualidades Alentejanos pelo seu contributo na valorização da Memória e da Identidade Alentejanas:

Os que quiseram (e puderam) estar presentes: António Nabo – na qualidade de jornalista ( Director da Folha de Montemor), Carlos Pinto de Sá – Autarca - Montemor-o-Novo, Domingos Montemor – Dirigente Associativo- Amareleja (Moura), Diogo Sotero – Dirigente Associativo- Montes Altoa (Mértola),  Etelvina Santos – Artesã e Artista Plástica - Montemor-o-Novo, Fernando Caeiros – Autarca - Castro verde, Francisco Colaço – Dirigente Associativo e Autarca - Aljustrel, Guilherme Alves Coelho – Arquitecto e Dirigente Associativo, Joaninha Cabeção – Contadora de Estórias - Cabeção (Mora), João Paulo Ramôa – Empresário Alentejano e Homem de Cultura - Beja, Jorge Nunes – Dirigente Associativo - Santiago do Cacém, José Chitas- Dirigente Associativo e Autarca - Mora, José Orta – Antropólogo e Poeta- Beja, José Salgueiro - Mestre das Plantas e Poeta - Montemor-o-Novo , Joseia Matos Mira – Escritora e Poetisa - Baleizão (Beja), Luís Bartolomeu Afonso da Palma – Dirigente Associativo e Autarca - Aljustrel, Manuela Parreira da Silva– Investigadora Pessoana, Professora e e Poetisa - Castro Verde, Pedro Mestre- Divulgador da Viola Campaniça/Músico e Cantor - Aldeia de Sete (Castro Verde) e Rosa Dias – Poetisa - Campo Maior.

Mas também outros amigos foram distinguidos que por razões de saúde ou profissionais não puderam estar presentes: Ana Borges - antiga delegada da DRCA, Luís Jordão- antigo Presidente da Casa do Alentejo, Manuel Macaísta Malheiros-Governador Civil de Setúbal, presidente da MAG desta Casa, sócio fundador e do Conselho Científico do CEDA, José Matias – sócio fundador do CEDA, moliniologista e autor de um dos trabalhos da colecção “Memória e Escrita Alentejana”, Sofia Fonte Santa - socia benemérita ( que cedeu a imagem do José da Fonte Santa para símbolo do CEDA), os poetas e escritores Víctor Encarnação, Hugo Santos e José Luís Peixoto, ,Monarca Pinheiro ( poeta e etnógrafo), os autarcas José Maria Pós-de Mina, António Tereno (sócio fundador e Presidente do CF do CEDA), José Ernesto de Oliveira, os músicos, intérpretes e/cantautores Francisco Ceia, Eduardo Ramos e Paulo Ribeiro (este representado na sessão por José Orta), o Constantino Piçarra – (historiador )o jornalista António José Brito ( Director do Correio do Alentejo, os dirigentes associativos Antero Silva, António Barradas e Constantino Cortes - integrou os órgãos sociais do CEDA e o grupo de trabalho inicial da “Nova Antologia dos Poetas Alentejanos” (no prelo), assim como Manuel Rosa, distinguido enquanto , apaixonada da Natureza.

Houve quem tivesse tido o cuidado de enviar mensagens de felicitações como foi o caso de Fernando Mão de Ferro, José Luís Peixoto ou Ana Borges – que com José Ernesto de Oliveira apoiaram a 1ª edição da Revista quando esta era apenas um projecto. “O CEDA defende a valorização da Memória, mas como é coerente tem memória e não esquece quem pela sua postura e pela sua prática apostou em nós” e dignificou o que significa ser Alentejano como foi também o caso de João Paulo Râmoa, que enquanto Governador Civil de Beja não deixou”cair” um protocolo com o CEDA, que assinou a poucas semanas do governo que o nomeara cair, o que possibilitou o arranque do Prémio Literário do CEDA.

Foi uma reunião de amigos? Também foi, mas estiveram lá muitos dos Homens e das Mulheres, que nas mais diversas áreas representam e o Alentejo tem de melhor, de mais inovador e onde tradição e modernidade se aliam na perfeição.

É uma honra ter um naipe de Amigos como estes “que se deslocam propositadamente à Casa do Alentejo para estarem connosco nesse
 dia em que se comemorou os
 100 anos da instauração da República em diversos locais da Margem Sul: Almada, Moita, Aldegalega, … “ referimos na altura.

A Sessão encerrou em confraternização, cantando-se os parabéns ao CEDA, saboreando lanche seguido do jantar, a voz e a viola campaniça de Pedro Mestre.


e a ... Poesia, sempre!

Dois poetas que me marcaram de uma forma decisiva.
Manuel da Fonseca e Federico García Lorca.


Um dia, com 12, 13 anos, numa sessão política, ainda no rescaldo do 25 de Abril, numa sala apinhada caminhava um homem já velho e falava. Não como os outros que diziam coisas que mal percebia, mas aderia entre o espanto e o entusiasmo. Mas aquele, mais velho e quase tropego dizia palavras tão belas como se fosse um pássaro que voava de ramo em ramo com toda a leveza do universo. Fazia poesia com cada palavra e eu estava maravilhado porque percebia tudo com uma clareza surpreendente, era como se aquele velho fosse um feiticeiro que falava só comigo e me dizia que havia um caminho para a Beleza, havia um caminho para o Amor, havia um caminho para a Vida; para eu não desanimar, não desistir, que aquela perca imensa de ter perdido o Alentejo anos antes era apenas um dos muitos obstáculos que surgiam no caminho, e que o universo me esperava... se eu quisesse percorrer o caminho, que podia ser ninguém e o universo ao mesmo tempo, como aquela figura poética do maltes que ele tanto simpatizava, porque ele também era um pouco assim: ser livre como o vento, maltês do vento. Anos mais tarde, ainda jovem, vim a privar com essa figura mitica do Alentejo que foi e é o Manel da Fonseca, passámos muitos férias próximos nos últimos anos da sua longa Vida na sua terra natal, entrevistei-o algumas vezes... ele aborrecia-se por eu não o tratar por tu e carinhosamente chamava-me Compadre. Nunca lhe disse - era tão tímido... ainda sou -
que nasci poeta no dia em que o ouvi falar da Beleza, do poder imenso da Poesia.
o Manel nasceu fez dia 15 de Outubro 99 anos.

Segundo Poema da Infância

                    (Manuel da Fonseca, in Rosa dos Ventos, 1940)


Quando foi que demorei os olhos
sobre os seios nascendo debaixo das blusas,
das raparigas que vinham, à tarde, brincar comigo?...
…Como nasci poeta
devia ter sido muito antes que as mães se apercebessem
[disso
e fizessem mais largas as blusas para as suas meninas.
Quando, não sei ao certo.

Mas a história dos peitos, debaixo das blusas,
foi um grande mistério.
Tão grande
que eu corria até ao cansaço.
E jogava pedradas a coisas impossíveis de tocar,
como sejam os pássaros quando passam voando.
E desafiava,
sem razão aparente,
rapazes muito mais velhos e fortes!
E uma vez,
de cima de um telhado,
joguei uma pedrada tão certeira
que levou o chapéu do Senhor Administrador!
Em toda a vila
se falou logo num caso de política,
o Senhor Administrador
mandou vir da cidade uma pistola,
que mostrava, nos cafés, a quem a queria ver;
e os do partido contrário
deixaram crescer o musgo nos telhados
com medo daquela raiva de tiros para o céu…


Tal era o mistério dos seios nascendo debaixo das blusas!



Quase 10 anos depois de conhecer o Manel conheco Lorca, conheci-o por causa da sua peça "Yerma" que ia ser encenada no grupo (H)ORA VIVA, que fundara em 1982 em Setúbal com o Fernando Casaca, e um
um grupo de miúdos e muidas todos(as) mais novos(as) do que nós, que nós preparavamos para um dia ser adultos. Em 1985, depois de um prémio nacional, concretização de sonhos bonitos, e de ter conhecido a mãe da minha filha Sofia, a Isabel, em pleno palco - que representou uma Yerma fabulosa -, o ambiente tornou-se irrespirável...e parti p'rau Sul, parti para as planícies imensas do Alentejo andaluz em busca de Federico
e fui encontrá-lo em Fuentevaqueros cavalgando num corcel de prata, "eran las cinco en punto de la tarde". E de novo, ele falou-me,. como fizera o Manel 10 anos antes, falou-me  da beleza e do sofrimento, do infinito e de como a Plenitude e a Felicidade existe e é atingível, a Beleza e a perfeição não é impossível ... mas é caminho de tantos espinhos quantos momentos de extâse, no Amor, no Amor intenso, pleno, total, onde cabem o Sol, a lua, o mar, o céu inteiro, tanto como a transformação do sonho em realidade, nos projectos, na criação, na Vida. No ano seguinte, 1986, 50 anos depois de as forças das trevas, envergonhados carrascos que nem sequer assumiram o acto), tiravam a vida - mas não a imortalidade e o fulgor - a um dos homens mais luminosos que andou pelo mundo. Criador multifacetado: Poeta, romancista,
dramaturgo, músico, ensaísta,encenador, actor- percorreu o pais com a sua companhioa "La Barraca" levando o Teatro ao povo que não sabia - etc, etc, Federico García Lorca (1898-936)
génio criador que encarnou a Alma mediterrânica deste nosso Sul azul, mediterrânico. Lorca sabia-o e disse-o (transcrevo de cor) que a acção dos homens livres, a revolução é agir, construir com os olhos postos no futuro, para os homens e as mulheres que virão mais tarde. Lorca sabia que temos que ser puros, que ser verdadeiros, procurar a Plenitude com a maior doçura e intransigêncis do mundo, apesar das incompreensões do nosso tempo... Lorca, no dizer do poeta seu contemporâneo Vicente Aleixandre Era capaz de toda a alegria do universo. Mas a sua gruta profunda, como a de todo o grande poeta, não era a da alegria. Os que o viram passar pela vida como uma ave cheia de colorido, não o conheceram. O seu coração era apaixonado como poucos, e a sua capacidade de amor e de sofrimento enobrecia aquela nobre fronte.".
Em Setembro de 1986, durante seis dias Federico García Lorca foi homenageado durante uma semana em Setúbal. Participaram o antigo jornalista (relatou para o mundo o massacre do Badajoz) e Embaixador Mário Neves, Manuel da Fonseca, David Morão-Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, Blanco Gil, Jorge Listopad, que entre outros,estiveram em Setúbal, em sessões moderadas por Baptista Bastos. Encerrou com um momento sublime: um recital no Claustro do Convento de Jesus - local de excelente acústica - com Carlos Paredes e Manuel Alegre.
Tantos anos depois, percebi recentemente que com essa minha primeira grande realização cultural nasci para a acção, a luta permanente, a necessidade de através da Beleza, da Poesia, participar com a suprema serenidade na necessária transformação, na procura absoluta da Luz, no irreversível caminho da Plenitude... só saboreada quase longos vinte anos depois, no século seguinte.
Do também grande Poeta e Amigo José da Fonte Santa o poema "Á Memória de Federico García Lorca"
que com o belo desenho do mesmo autor foi o cartaz oficial da Homenagem:

À Memória de Federico García Lorca


                                        (José da Fonte Santa, 1925-1998, in Magia Alentejana Poesia e Desenhos)
              I

Uma menina anuncia
num búzio limpo de tempo
que Federico vem chegando
num poema azul
            dito por um cigano.

Vem sonhando,
mais leve que uma sombra,
infância seu regresso:
coração verde de pomba
                  feito verso.

Vem como se fosse:
flor, nascimento,
gesto fresco e puro
ternura encantamento.


             II


Quem não é poeta
                  tenta
mas não inventa
o estar lá
            não estando:
sortilégio dado
            no momento
em que se mostra
            o deslumbramento:
- criança debruçada
no rosto duma pomba
ouvindo uma guitarra
              imaginada
ao sabor do vento.

Quatro poemas do livro  Diván del Tamarit, Nova Iorque, 1940 (no original)

(Gacela Primera
Del Amor Imprevisto)
 
Nadie comprendía el perfume
da la oscura magnolia de tu vientre,
Nadie sabía que martirizabas
un colibrí de amor entre los dientes.
 
Mil cabalitos persas se dormían
en la plaza con luna de tu frente,
mientras que yo enlazaba cuatro noches
tu cintura, enemiga de la nieve.
 
Entre yeso y jazmines, tu moirada
era un pálido ramo de simientes.
Yo busqué, para darte, por mi pecho
las letras de martíl que dicen 'simpre'.
(excerto)
 
 Gacela  IX
Del Amor Maravilhoso
 
Con todo el yeso
de los malos campos,
eras junco de amor, jazmín mojado.
 
Con sur y llama
de los malos cielos,
eras rumor de nieve por mi pecho.
 
Cielos y campos
anudaban cadenas en mis manos.
 
Campos y cielos
azotaban las llagas de mi cuerpo.
 
 
Casida II
Del llanto
 
He cerrado mo balcón
porque no quiero oír el llanto,
pero por detrás de los grises muros
no se oye otra cosa que el llanto.
 
Hay muy pocos ángeles que canten,
hay muy pocos perros que ladren,
mil violines caben en la palma de mi mano.
 
Pero el llanto es un perro inmenso,
el llanto es un ángel  inmenso,
el llanto es un violín inmenso,
las lágrimas amordazan al viento,
y no se oye otra cosa que el llanto.


Casida IV
De La Mujer Tendida

Verte desnuda es recordar la Tierra,
la Tierra lisa, limpia de caballos.
La Tierra sin un junco, forma pura
cerrada al porvenir: confín de plata.

Verte desnuda es comprender el ansia
de la lluvia que busca débil talle,
o la fiebre del mar de inmenso rostro
sin encontrar la luz de su mejilla.
(excerto)

8 de out. de 2010

Pablo Neruda e a eternidade do Amor


BELA



Bela,
como na pedra fresca
da fonte, a água
abre um vasto relâmpago de espuma,
assim é o sorriso do teu rosto,
bela.


Bela,
de finas mãos e delicados pés
como um cavalinho de prata,
caminhando, flor do mundo,
assim te vejo,
bela.


Bela,
com um ninho de cobre enrolado
na cabeça, um ninho
da cor do mel sombrio
onde o meu coração arde e repousa,
bela.


Bela,
não te cabem os olhos na cara,
não te cabem os olhos na terra.
há países, há rios
nos teus olhos,
a minha pátria está nos teus olhos,
eu caminho por eles,
eles dão luz ao mundo
por onde quer que eu vá,
bela.


Bela,
os teus seios são como dois pães feitos
de terra cereal e lua de ouro,
bela.


Bela,
a tua cintura
moldou-a o meu braço como um rio quando
passou mil anos pelo teu doce corpo,
bela.


Bela,
não há nada como as tuas coxas,
talvez a terra guarde
em algum lugar oculto
a curva e o aroma do teu corpo,
talvez em algum lugar,
bela.

Bela, minha bela,
a tua voz, a tua pele, as tuas unhas,
bela, minha bela,
o teu ser, a tua luz, a tua sombra,
bela,
tudo isso é meu, bela,
tudo isso é meu, minha,
quando caminhas ou repousas,
quando cantas ou dormes,
quando sofres ou sonhas,
sempre,
quando estás perto ou longe,
sempre,
és minha, minha bela,
sempre.

Pablo Neruda,
Versos do Capitão, Porto, 1996

1 de out. de 2010

A República ou o Alentejo... por Eugénio





Planície

As ancas nuas das éguas bravas
Cheiram ao sol verde das searas

A caminho de Beja

Chega ao fim o enlouquecido
amarelo dos girassóis;
chega ao fim extenuado.

Só o branco,
o branco enraivecido
da cal, continua a sangrar
nos flancos - como toiro ferido.


Nestes dias de correrias e de exaustiva actividade- depois de muitos, muitos meses, quase um ano de longos trabalhos preparatórios – a verificar os últimos pormenores, a receber os últimos textos para as pastas, a abrir sessões, a receber os convidados, a moderar mesas, a despedir-se dos convidados e a contar as poucas horas de sono pela frente para, no outro dia, para logo bem cedo tudo recomeçar de novo. Nestes dias em Beja, Aljustrel e na Mina de S. Domingos passaram-se momentos extraordinários, fosse ouvindo as intervenções de António Ventura, António Pedro Vicente, Alice Samara, António Quaresma, Fernando Rosas, Fernando Gameiro, João Esteves, Luís Farinha, Manuel Baioa, Miguel Bento, Jorge Feio ou Paulo Guimarães, ou Mário Soares na sessão de encerramento, dia 25 em Beja, ou  Alfredo Caldeira na inauguração da exposição,Vito Carioca e Miguel Góis na abertura; momentos de grande serenidade e exaltação nos apontamentos musicais dos "Rastolhice" ou do Paulo Ribeiro – que se está cada vez mais a tornar-se um cantor do Sul com tonalidades mediterrânicas - ou o que se vai passar dia 1 em Setúbal com Macaísta Malheiros, Rogério de Brito e os oradores Albérico Afonso e Álvaro Arranja e depois a encerrar o ciclo dia 4 na Casa do Alentejo com Nelson Brito e José Manuel Mariano – respectivamente Presidente do Município e Presidente do Centro Republicano, como já se passou em Aljustrel,  - na homenagem a Brito Camacho, proferida pelo Luís Bartolomeu Afonso – pai do Luís Afonso – e Francisco Colaço, Jorge Nunes e depois da apresentação da Memória Alentejana, como já aconteceu nos outros locais. A encerrar vão ser simbolicamente uma trintena de personalidades, amigos, patrícios desta nossa Pátria Alentejana que se têm distinguidos , nas mais variadas áreas, na valorização e na dignificação da Identidade, da Memória, dos valores patrimoniais do Alentejo.


Tudo isto... é muito – fruto dum imenso e aturado trabalho de tantos meses - mas… tudo isso é pouco, não chega… por isso sinto-me dividido e… depois das cerimónias, das formalidades mesmo que o mais informais possíveis… apetece-me urgentemente despir o casaco, arregaçar as mangas da camisa e… correr pelos campos, nestes campos do Sul, do meu imenso Sul azul....






Do Sul


O branco branquíssimo do muro:
a beleza concreta, acidulada,
do rigoroso espírito do Sul




Caminhar pelos campos, como fiz recentemente junto a um afluente do Almansor, nestes dias cálidos de fim de Verão em que o doirado das folhas dos plátanos subtilmente ocupa o luga primaveril da fogosidade do desejo adivinhado no decote entreaberto ou um traço de seda por entre a saia que apetece despir… lentamente...  ou a ânsia torrencial do sol a pique na paisagem parada … em tarde de vento suão, céu e terra rubros de sangue e fogo e lava ardente e os corpos brilhantes suados de desejo de prazer momentaneamente saciados, apenas momentamente… corpos e alma insaciáveis…. Cavalos de fogo e vento… mas agora há doçura serena na paisagem, caminhando por uma clareira onde os cães - o trigo e o joio - se banham como se fosse ao luar…. Caminhamos entre as ruínas da igreja de S. Aleixo e a barragem do Raimundo onde avistamos as garças brancas de que fala Eugénio, quando …






No Alentejo, com as cegonhas

Há quem goste do Alentejo pelo ensopado de borrego, os brancos da Vidigueira, os tintos de Borba ou do Redondo. Outros gostarão dele pelo cromeleque dos Almendres, o Templo de Diana, o Convento da Conceição, onde a quase lendária Mariana Alcoforada teria aberto o coração e o cama ao Cavaleiro de Chamilly, e depois escrito as mais exasperadas e comoventes cartas de amor, que alguns têm ainda por autênticas, e que, juntamente com o desvairado amor de Pedro e Inês, tanta importância têm no nosso imaginário. Outros ainda virão ao Alentejo pelos cavalos de Alter, os girassóis em flor dos arredores de Beja, as garças brancas dos campos de Montemor, o ulmeiro de Portalegre, que o Régio não soube levar a um poema. Mas também se poderia descer ao Alentejo pela ásperta melancolia dos corais de Vila Nova de S. Bento, ou somente pelas gloriosas oliveiras de Serpa, algumas tão veneráveis como as de Colono, terra de exílio de Édipo, que Sófocles tinha por imortais, “florescendo sem receios de inimigos, jovens ou velhos, pois Zeus e Atenas de olhos glaucos continuamente não as perdem de vista”.
São boas razões para amar o Alentejo, mas as minhas são outras. quem minimamente me conheça é capaz de saber que escolhi o Porto para viver, ou antes, para trabalhar, mas que nasci na Beira, em terras interiores que prolongam o Alentejo. E saberá talvez que tenho a nostalgia do Sul. Mas o Sul, que tão insistentemente vem à tona nos meus versos, se na verdade começa na extensão rara dos campos alentejanos, e no branco coalhado dos  seus muros, atravessa a Andaluzia e vai espraiar-se nas costas do Mar Mediterrâneo. A luz quente e acidulada que encheu os olhos de Ulisses é também a minha, e as terras, que apenas são produtivas graças ao aturado esforço dos seus habitantes, são as terras da minha cultura - essas em que o saber e a mão do homem não se tinha ainda divorciado.
(...)
Abalámos na manhã seguinte, levando nos olhos a torre da cidade, de onde se avista, não direi o mundo inteiro, mas pelo menos todo o Alentejo. E não tardou que a luz matinal ainda fresca, e as cigarras, me levassem a esquecer a gárgula e a mulher a quem Rilke chamava emblematicamente "a Portuguesa". Longe, porque tudo no Alentejo é distante, duas cegonhas, num campanário, espanejavam as asas, erguiam-se ligeiramente no ar, voltavam a cair. Não tardaria que o sol começasse a ferver.
(...)
Voltei a Beja para o lançamento de uma das edições das "Cartas", a oitava, se não estou em erro. Fizemos então leituras no Convento e na Biblioteca, ceámos n'Os Infantes, percorremos as ruas empinadas da Mouraria, sentámo-nos na Praça da "loggia"florentina, contemplámos longamente os pequenos painéis do tríptico flamengo, 'Cristo e os Discípulos', demorámo-nos na Biblioteca, cujos labirintos encantariam Jorge Luís Borges, deixámo-nos envolver, como se fora um linho fresco, pela serenidade da igreja da Santa Maria.
Só faltava descobrir o Convento de S. Francisco, transformado com inteligência e bom gosto em pousada. E é aqui, onde me sinto como andorinha ou cegonha que regressa ao sítio onde fez ninho, que termino. E vou assinar.

Eugénio de Andrade

in Alentejo
 Eugénio de Andrade & Armando Alves, Beja, Dez. 1997

neste livro onde a Beleza existe em cada poro: a escrita de Eugénio, as ilustrações de Armando Alves, a delicadeza do papel e de cada pormenor... no grafismo, na paginação, na imprensão... onde transparece a subtileza infinita, como diz o poeta: capaz da suprema elegância de ser simples.